Autor
de A
Era das Revoluções, A Era do Capital, A Era dos
Impérios e
a A
Era dos Extremos, em que tece uma ‘breve
história’ do século 20, questiona assimilações como
a superioridade cultural do Ocidente, por vezes
invólucro de uma arrogância histórica que hoje mal
disfarça a incapacidade de entender, afinal de
contas, o que vem a ser uma sociedade tribal ou um
califado. Por outro lado, acha que a intensificação
dos fluxos migratórios, levando incessantemente
gente jovem de um canto a outro do planeta, embora
gere muita xenofobia, gera também uma visão mais
disseminada da diversidade do mundo. Visão que a
geração de Hobsbawm, nascido em 1917 no Egito sob
domínio inglês, numa família judia mais tarde
perseguida pelo nazismo, definitivamente não teve.
Professor (emérito) da Universidade
de Cambridge, na Inglaterra, e da New School for
Social Research, em Nova York, Hobsbawm só é capaz
de compreender o historiador como um "observador
participante", além de se autodefinir também como um
"viajante de olhos abertos e jornalista ocasional".
Chega a recomendar aos seus leitores que tentem
tomar o que ele escreve "na base da confiança",
porque embora pesquise incansavelmente, se dispensa
das referências bibliográficas sem fim e das
enfadonhas exibições de erudição. Por isso,
seguramente, seu estilo é inconfundível.
Marx, ele descobriu na juventude. Ao
fixar-se em Londres, logo alistou-se no Partido
Comunista e, depois, no exército britânico, para
combater Hitler. Evidentemente Hobsbawm foi cobrado
pelo método marxista de análise que ainda hoje
utiliza, especialmente quando muitos dos seus pares
trataram de rever posições, a partir do
desmoronamento do mundo soviético. Em sua
autobiografia, Tempos Interessantes (lançada em 2002
pela Companhia das Letras, assim como outros títulos
importantes do autor), ele próprio já tratava de
acalmar os fustigadores: "A história poderá julgar
minhas opiniões políticas - na verdade em grande
parte já as julgou - e os leitores poderão julgar
meus livros. O que busco é o entendimento da
história, e não concordância, aprovação ou
comiseração".
No livro Globalização, Democracia e
Terrorismo, de 2007, o senhor passa para os leitores
certo pessimismo ao lhes colocar uma perspectiva
crucial e ao mesmo tempo desconfortante: 'Não
sabemos para onde estamos indo', diz, referindo-se
aos rumos mundiais. Olhando as últimas décadas pelo
retrovisor da história esse sentimento parece ter se
intensificado. Em que outros momentos a humanidade
viveu períodos marcados por essa mesma sensação de
falta de rumos?
Embora existam diferenças entre os
países, e também entre as gerações, sobre a
percepção do futuro - por exemplo, hoje há visões
mais otimistas na China ou no Brasil do que em
países da União Europeia e nos Estados Unidos -,
ainda assim acredito que, ao pensar seriamente na
situação mundial, muita gente experimente esse
pessimismo ao qual você se refere. Porque de fato
atravessamos um tempo de rápidas transformações e
não sabemos para onde estamos indo, mas isso não
constitui um elemento novo em tempos críticos.
Tempos que nos remetem ao mundo em ruínas depois de
1914, ou mesmo a vários lugares daquela Europa entre
duas grandes guerras ou na expectativa de uma
terceira. Aqueles anos durante e após a 2ª Guerra
foram catastróficos, ali ninguém poderia prever que
formato o futuro teria ou mesmo se haveria algum
futuro. Cruzamos também os anos da Guerra Fria,
sempre assustadores pela possibilidade de uma guerra
nuclear. E, mais recentemente, notamos a mesma
sensação de desorientação ao vermos como os Estados
Unidos mergulharam numa crise econômica que até
parece ser o breakdown do capitalismo liberal.
Nações saíram empobrecidas,
arruinadas mesmo, das guerras mundiais, mas é
adequado pensar que havia naqueles escombros o
desenho de um futuro?
Sim. Se de um lado o futuro nos era
desconhecido e cada vez mais inesperado, havia por
outro lado uma ideia mais nítida sobre as opções que
se apresentavam. No entreguerras, a escolha
principal de um modelo se dava entre o capitalismo
reformado e o socialismo com forte planejamento
econômico - supremacia de mercado sem controle era
algo impensável. Havia ainda a opção entre uma
democracia liberal, o fascismo ultranacionalista e o
comunismo. Depois de 1945, o mundo claramente se
dividiu numa zona de democracia liberal e bem-estar
social a partir de um capitalismo reformado, sob a
égide dos EUA, e uma zona sob orientação comunista.
E havia também uma zona de emancipação de colônias,
que era algo indefinido e preocupante. Mas veja que
os países poderiam encontrar modelos de
desenvolvimento importados do Ocidente, do Leste e
até mesmo resultante da combinação dos dois. Hoje
esses marcos sinalizadores desapareceram e os
‘pilotos’ que guiariam nossos destinos, também.
Como o senhor avalia o poder das
imagens de destruição nos ataques do 11/9 a Nova
York, tão repetidas nos últimos dias? Tornaram-se o
símbolo de uma guinada histórica, apontando novas
relações entre Ocidente e Oriente? Por que imagens
do cenário de morte de Bin Laden surtiram menos
impacto?
A queda das torres do World Trade
Center foi certamente a mais abrangente experiência
de catástrofe que se tem na história, inclusive por
ter sido acompanhada em cada aparelho de televisão,
nos dois hemisférios do planeta. Nunca houve algo
assim. E sendo imagens tão dramáticas, não
surpreende que ainda causem forte impressão e tenham
se convertido em ícones. Agora, elas representam uma
guinada histórica? Não tenho dúvida de que os
Estados Unidos tratam o 11/9 dessa forma, como um
turning point, mas não vejo as coisas desse modo. A
não ser pelo fato de que o ataque deu ao governo
americano a ocasião perfeita para o país demonstrar
sua supremacia militar ao mundo. E com sucesso
bastante discutível, diga-se. Já o retrato de Bin
Laden morto (que não foi divulgado) talvez fosse uma
imagem menos icônica para nós, mas poderia se
converter num ícone para o mundo islâmico. Da
maneira deles, porque não é costume nesse mundo dar
tanta importância a imagens, diferentemente do que
fazemos no Ocidente, com nossas camisetas estampando
o rosto de Che Guevara.
Mas além da chance de demonstrar
poderio militar, os Estados Unidos deram uma guinada
na sua política externa a partir de 2001, ajustando
o foco naquilo que George W. Bush batizou como ‘war
on terror’. Outro encaminhamento seria possível?
Eu diria que a política externa
americana, depois de 2001, foi parcialmente
orientada para a guerra ao terror, e
fundamentalmente orientada pela certeza de que o
11/9 trouxe para os EUA a primeira grande
oportunidade, depois do colapso soviético, de
estabelecer uma supremacia global, combinando poder
político-econômico e poder militar. Criou-se a
situação propícia para espalhar e reforçar bases
militares americanas na Ásia central, ainda uma
região muito ligada à Rússia. Sob esse aspecto,
houve uma confluência de objetivos - combate-se o
inimigo ampliando enormemente a presença militar
americana. Mas, sob outro aspecto, esses objetivos
conflitaram. A guerra no Iraque, que no fundo nada
tinha a ver com a Al-Qaeda, consumiu atenção e uma
enormidade de recursos dos EUA, e ainda permitiu à
organização liderada por Bin Laden criar bases não
só no Iraque, mas no Paquistão e extensões pelo
Oriente Médio.
Os Estados Unidos lançaram-se nessa
campanha sabendo o tamanho do inimigo?
O perigo do terrorismo islâmico ficou
exagerado, a meu ver. Ele matou milhares de pessoas,
é certo, mas o risco para a vida e a sobrevivência
da humanidade que ele possa representar é muito
menor do que o que se estima. Exemplo disso são as
importantes mudanças que ocorreram neste ano no
mundo árabe, mudanças que nada devem ao terrorismo
islâmico. E não só: elas o deixaram à margem. Agora,
o mais duradouro efeito da war on terror, aliás, uma
expressão que os diplomatas americanos finalmente
estão abandonando, terá sido permitir que os Estados
Unidos revivessem a prática da tortura, bem como
permitir que os cidadãos fossem alvo de vigilância
oficial. Isso, claro, sem falar das medidas que
fazem com que a vida das pessoas fique mais
desconfortável, como ao viajar de avião.
Diante dos problemas econômicos que
hoje afligem os Estados Unidos, ainda sem um
horizonte de recuperação à vista, o senhor diria que
seguimos em direção a um tempo de declínio da
hegemonia americana?
Nós de fato caminhamos em direção à
Era do Declínio Americano. As guerras dos últimos
dez anos demonstram como vem falhando a tentativa
americana de consolidar sua solitária hegemonia
mundial. Isso porque o mundo hoje é politicamente
pluralista, e não monopolista. Junto com toda a
região que alavancou a industrialização na passagem
do século 19 para o século 20, hoje a América
assiste à mudança do centro de gravidade econômica
do Atlântico Norte para o Leste e o Sul. Enquanto o
Ocidente vive sua maior crise desde os anos 30, a
economia global ainda assim continua a crescer,
empurrada pela China e também pelos outros Brics.
Ainda assim, não devemos subestimar os Estados
Unidos. Qualquer que venha a ser a configuração do
mundo no futuro, eles ainda se manterão como um
grande país e não apenas porque são a terceira
população do planeta. Ainda vão desfrutar, por um
bom tempo, da notável acumulação científica que
conseguiram fazer, além de todo o soft power global
representado por sua indústria cultural, seus
filmes, sua música, etc.
Não só por desdobramentos
político-militares do 11/9, mas também pela
emergência de novos atores no mundo globalizado,
criam-se situações bem desafiadoras. Por exemplo, o
que o Ocidente sabe do Islã? E dos países árabes que
hoje se levantam contra seus regimes? Qual é o grau
de entendimento da China? Enfim, o Ocidente enfrenta
dificuldades decorrentes de uma certa superioridade
cultural ou arrogância histórica?
Ao longo de toda uma era de
dominação, o Ocidente não só assumiu que seus
triunfos são maiores do que os de qualquer outra
civilização, e que suas conquistas são superiores,
como também que não haveria outro caminho a seguir.
Portanto, ao Ocidente restaria unicamente ser
imitado. Quando aconteciam falhas nesse processo de
imitação, isso só reforçava nosso senso de
superioridade cultural e arrogância histórica.
Assim, países consolidados em termos territoriais e
políticos, monopolizando autoridade e poder, olharam
de cima para baixo para países que aparentemente
estavam falhando na busca de uma organização nas
mesmas linhas. Países com instituições democráticas
liberais também olharam de cima para baixo para
países que não as tinham. Políticos do Ocidente
passaram a pensar democracia como uma espécie de
contabilidade de cidadãos em termos de maiorias e
minorias, negando inclusive a essência histórica da
democracia. E os colonizadores europeus também se
acharam no direito de olhar populações locais de
cima para baixo, subjugando-as ou até
erradicando-as, mesmo quando viam que aqueles modos
de vida originais eram muito mais adequados ao meio
ambiente das colônias do que os modos de vida
trazidos de fora. Tudo isso fez com que o Ocidente
realmente desenvolvesse essa dificuldade de entender
e apreciar avanços que não fossem os próprios.
Essa superioridade do Ocidente pode
mudar com a emergência de uma potência como a China?
Mas mesmo a China, que no passado
remoto era tida como uma civilização superior, foi
subestimada por longo tempo. Só depois da 2ª Guerra
é que seus avanços em ciência e tecnologia começaram
a ser reconhecidos. E só recentemente historiadores
têm levantado as extraordinárias contribuições
chinesas até o século 19. Veja bem, ainda não
sabemos em que medida a cultura, a língua e mesmo as
práticas espirituais da Pérsia, hoje Irã, enfim, em
que medida aquele fraco e frequentemente conquistado
império influenciou uma grande parte da Ásia, do
Império Otomano até as fronteiras da China. Sabemos?
Temos grande dificuldade em compreender a natureza
das sociedades nômades, bem como sua interação com
sociedades agrícolas assentadas, e hoje a falta
dessa compreensão torna quase impossível traduzir o
que se passa em vastas áreas da África e da região
do Saara, por exemplo, no Sudão e na Somália. A
política internacional fica completamente perdida
quando confrontada por sociedades que rejeitam
qualquer tipo de estado territorial ou poder
superior ao do clã ou da tribo, como no Afeganistão
e nas terras altas do sudoeste asiático. Hoje
achamos que já sabemos muito sobre o Islã, sem nem
sequer nos darmos conta de que o radicalismo xiita
dos aiatolás iranianos e o sonho de restauração do
califado por grupos sunitas não são expressões de um
Islã tradicional, mas adaptações modernistas,
processadas o longo século 20, de uma religião
prismática e adaptável.
Com todos esses exemplos de 'mundos'
que se estranham, o senhor diria que a história
corre o risco das distorções?
Apesar de todos esses exemplos, sou
forçado a admitir que a arrogância histórica
ocidental inevitavelmente se enfraquece, exceto em
alguns países, entre eles os EUA, cujo senso de
identidade coletiva ainda consiste na crença de sua
própria superioridade. Nos últimos dez anos, a
história tomou outro curso, muito afetada pelas
imigrações internacionais que permitem a mulheres e
homens de outras culturas virem para os "nossos"
países. Dou um exemplo: hoje a informação municipal
na região de Londres onde vivo está disponível não
apenas em inglês, mas em albanês, chinês, somali e
urdu. A questão preocupante é que, como reação a
tudo isso, surge também uma xenofobia de caráter
populista, que se propaga até nas camadas mais
educadas da população. Mas, inegavelmente, numa
cidade como Londres ou Nova York, onde a presença
dos imigrantes de várias partes é forte, existe hoje
um reconhecimento maior da diversidade do mundo do
que se tinha no passado. Turistas que buscam
destinos na Ásia, África ou até mesmo no Caribe
costumam não entender a natureza das sociedades que
cercam seus hotéis, mas jovens mulheres e homens que
hoje viajam, a trabalho ou estudos, para esses
lugares, já criam outra compreensão. Em resumo,
apesar da expansão de xenofobia, há motivos para
otimismo porque a compreensão abrangente do nosso
tempo complexo requer mais do que conhecimento ou
admiração por outras culturas. Requer conhecimento,
estudo e, não menos importante, imaginação.
Imaginação?
Sim, porque essa compreensão
abrangente é frequentemente dificultada pelo
persistente hábito de políticos e generais passarem
por cima do passado. O Afeganistão é um clamoroso
exemplo do que estou dizendo. Temo que não seja o
único.
Na sua opinião, estaríamos
atravessando um momento regressivo da humanidade
quando fundamentalismos religiosos impõem visões de
mundo e modos de vida?
O que vem a ser um momento
regressivo? Esta é a pergunta que faço. Não acredito
que nossa civilização esteja encarando séculos de
regressão como ocorreu na Europa Ocidental depois da
queda do Império Romano. Por outro lado, devemos
abandonar a antiga crença de que o progresso moral e
político seja tão inevitável quanto o progresso
científico, técnico e material. Essa crença tinha
alguma base no século 19. Hoje o problema real que
se coloca, o maior deles, é que o poder do progresso
material e tecnocientífico, baseado em crescente e
acelerado crescimento econômico, num sistema
capitalista sem controle, gera uma crise global de
meio ambiente que coloca a humanidade em risco. E, à
falta de uma entidade internacional efetiva no plano
da tomada de decisão, nem o conhecimento consolidado
do que fazer, nem o desejo político de governos
nacionais de fazer alguma coisa estão presentes.
Esse vazio decisório e de ação pode, sim, levar o
nosso século para um momento regressivo. E
certamente isso tem a ver com aquele "sentido de
desorientação" que discutimos no início da
entrevista.
Apoiado na sua longa trajetória
acadêmica, que conselhos o senhor daria aos jovens
historiadores de hoje?
Hoje pesquisar e escrever a história
são atividades fundamentais, e a missão mais
importante dos historiadores é combater mitos
ideológicos, boa parte deles de feitio nacionalista
e religioso. Combater mitos para substituí-los
justamente por história, com o apoio e o estímulo de
muitos governos, inclusive. Se eu fosse jovem o
suficiente, gostaria de participar de um excitante
projeto interdisciplinar que recorresse à moderna
arqueologia e às técnicas de DNA para compor uma
história global do desenvolvimento humano, desde
quando os primeiros Homo sapiens tenham aparecido na
África oriental e como elas se espalharam pelo
globo. Agora, se eu fosse um jovem historiador
latino-americano, daí eu poderia ser tentado a
investigar o impacto do meu continente sobre o resto
do mundo. Isso, desde 1492, na era dos
descobrimentos, passando pela contribuição material
desse continente a tantos países, com metais
preciosos, alimentos e remédios, até o efeito da
América Latina sobre a cultura moderna e a
compreensão do mundo, influenciando intelectuais
como Montaigne, Humboldt, Darwin. E, evidentemente,
eu pesquisaria a riqueza musical do continente,
fosse eu um latino-americano. Isso é tudo o que eu
quero dizer.