Na Inglaterra, a venda de esposas era uma maneira de acabar com um casamento insatisfatório, normalmente de maneira consensual.
Da redação
A venda de esposas provavelmente se originou no final do século XVII, época em que o divórcio era uma impossibilidade prática para todos, exceto os mais ricos.
Na visão de um casal que desejava separar-se de maneira moralmente aceitável, a venda apresentava-se como um processo vexatório mas que permitia tornar legítimo, e portanto socialmente satisfatório, o rearranjo da sua relação conjugal.
Em sua forma típica esse costume assumiu uma forma ritualizada, que buscava assegurar a pretensa legalidade das transações.
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Origens do costume da venda
A venda de esposas em sua forma ritual parece ter se originado como um costume no final do século XVII, época em que referências a vendas começaram a surgir de maneira mais consistente.
Entre 1690 e 1750 cerca de uma dezena de casos foram documentados no país, dentre os quais o de um certo John, de Tipton, que, em novembro de 1692, “vendeu a sua esposa” a um homem de nome Bracegirdle; e o de Thomas Heath Maultster, que, em 1696, foi punido por “coabitar de maneira ilegal com a esposa de George […] tendo-a comprado de seu marido”.
Contudo, o costume se firmaria sobretudo nas décadas seguintes, e em um caso ocorrido em Oxford, em 1789, a venda de esposas é descrita como “a forma vulgar do divórcio, recentemente adotada”, sugerindo que essa ainda não era uma prática consolidada, embora estivesse consideravelmente difundida pelo país
Embora no início da Idade Moderna existissem métodos juridicamente válidos para romper um casamento na Inglaterra, as opções disponíveis eram inacessíveis à maioria da sociedade.
A dissolução do casamento ainda era restrita aos ingleses que podiam bancar um complexo processo de anulação ou pagar uma multa de £ 3.000 — o equivalente a £ 15.000 hoje (cerca de R$ 75.000).
Quem não tinha esse cacife recorria a outros meios para conseguir o divórcio.
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Como aconteciam as vendas?
A venda acontecia publicamente, e em seguida o marido levava sua esposa por um cabresto até o local onde ela ocorreria, normalmente um mercado. Ali, a esposa era leiloada diante de espectadores, e, como sinal de realização do negócio, dinheiro era trocado e a esposa era entregue pelo cabresto ao comprador.
As vendas também podiam incluir os filhos, e por vezes os valores em dinheiro eram completados com outros bens, notadamente bebidas alcoólicas e animais.
O valor da venda não parece ter sido a principal consideração durante as vendas, mas existem registros de maridos e outros interessados comprando e revendendo esposas em busca de lucro.
Embora relatos da época buscassem salientar aspectos cômicos das vendas, a situação era inerentemente humilhante e podia ser degradante para os envolvidos, sobretudo a esposa. Contudo, muitos relatos contemporâneos sugerem a independência e a vitalidade sexual das mulheres, e afirmam que o consentimento da esposa era essencial para o sucesso de cada transação.
Embora esposas tenham se negado a serem vendidas durante o século XIX, não existem registros de resistência à venda no século XVIII. Com efeito, são conhecidos casos de esposas que insistiram em ser vendidas, que foram vendidas para seus familiares, e que arranjaram suas próprias vendas a agentes contratados.
A venda de esposas parece ter sido difundida por toda a Inglaterra, e cerca de quatrocentas ocorrências foram documentadas, um número pequeno em comparação com os casos de abandono conjugal do mesmo período.
Embora o costume não tivesse fundamento legal e, notadamente a partir de meados do século XIX, frequentemente resultasse em processos judiciais, em geral a atitude das autoridades públicas e religiosas era ambígua em relação a ele.
Pelo menos um magistrado declarou não acreditar que tivesse o direito de impedir a venda de esposas, e houve casos de clérigos e comissários das Poor Laws forçando maridos a venderem suas esposas como forma de evitar seu envio para workhouses.
A crescente exposição de vendas de esposas nos jornais gradualmente aumentou a oposição a esse costume e, como consequência, o número de vendas documentadas diminuiu a partir da segunda metade do século XIX.
A prática persistiu até às primeiras décadas do século XX, quando vendas menos públicas ainda ocorriam ocasionalmente, e o último caso de que se tem notícia foi reportado em Leeds, em 1926.
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As fontes sobre as vendas de esposas
Segundo o historiador Samuel Menefee em seu livro Wives for Sale, entre 1837 e 1901, foram registradas 387 vendas de esposas na Inglaterra.
O historiador E. P. Thompson considerou muitos dos episódios contabilizados por Menefee “vagos e duvidosos”, e que algumas contagens duplas haviam ocorrido. Contudo, ele concordou que cerca de trezentos relatos eram autênticos, o que, quando combinado com sua própria pesquisa, resultou em cerca de quatrocentos casos confirmados.
Desses, aproximadamente trezentos ocorreram no período 1780 e 1850, um número pouco significativo em comparação com os episódios de abandono conjugal, que na era vitoriana contavam dezenas de milhares. Como muitas vendas eram realizadas em privado, é muito provável que a maior parte delas jamais tenha sido noticiada.
Com efeito, os poucos casos conhecidos geralmente foram notados porque os envolvidos se envolveram em algum procedimento judicial ou administrativo.
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Havia consentimento das mulheres?
Embora muitos relatos da época salientassem aspectos cômicos das vendas e apontassem a diversão dos espectadores, as vendas eram vexatórias para os envolvidos.
Uma notícia de 1806 informa que uma venda em Hull, no mesmo ano, fora adiada “devido à multidão que uma ocorrência tão extraordinária reuniu”, sugerindo que os leilões de esposas eram eventos capazes de atrair numerosos espectadores e nos quais as multidões podiam impor grande humilhação ao casal.
De fato, historiadores têm ressaltado que a humilhação era inerente às vendas, e talvez até mesmo proposital.
Enquanto eventos carnavalescos, os episódios de venda de esposas possuíam um caráter ambivalente: “alegres e triunfantes, mas também carregados de zombaria e queixa”.
A humilhação teria tido um papel importante na redefinição da relação conjugal e, sobretudo, na recuperação da reputação dos envolvidos na venda.
O consentimento da esposa não parece ter sido universal, pois existem relatos de mulheres que não eram nem mesmo consultadas a respeito de suas vendas, mas diversas fontes afirmam que ele era essencial para o sucesso de cada transação.
Por exemplo, um documento de venda contido em uma petição apresentada a um tribunal de Somerset em 1758, preservado no Museu Britânico, dá testemunho de uma esposa de cerca de dezoito anos, que meses antes tinha sido vendida por seu marido por pouco mais de seis libras.
Na petição apresenta ao juiz a esposa jamais se opõe à venda, embora reclame que, três meses depois da venda, seu marido voltara a procura-la e ao seu novo companheiro, exigindo mais dinheiro.
Sem recursos financeiros e habilidades para negociar, para muitas mulheres a venda era a única saída para um casamento infeliz.
Além disso, para alguns autores as vendas permitiam a esposas infelizes e em casamentos ineficientes “livrar-se dos casamentos quando a lei inglesa as impediam de fazê-lo”.
De fato, existem relatos de esposas que teriam insistido na venda.