Imagem da capa: Quadro “A batalha entre o carnaval e a quaresma” (1559), de Pieter Bruegel, o velho.
Entre confetes, músicas e muita alegria, o carnaval possui raízes antigas, que nos remontam à Antiguidade.
Pablo Michel Magalhães Mestre em História - UEFS
A cada ano celebramos um festival de cores, música e alegria. É o carnaval que, no Brasil, representa uma das manifestações culturais populares mais importantes. Cada Estado possui uma maneira de comemorar, variando os estilos musicais e as formas pelas quais as pessoas vão às ruas.
Na Bahia, em especial Salvador, os foliões vão às ruas seguindo os trios elétricos com suas bandas de pagode baiano e axé music. Em Pernambuco, principalmente em Recife, o frevo anima o público, que se reúne no centro da cidade pra acompanhar o Galo da Madrugada. No Rio e em São Paulo, as escolas de samba produzem uma festa rica em brilho e arte, enquanto nas ruas os blocos juntam milhares de pessoas animadas por diversos estilos musicais.
Essa diversidade é fruto das diversas influências que compõem o carnaval brasileiro. Das tradições europeias de bailes de máscaras aos entrudos de rua luso-brasileiros, existe um misto de influências culturais.
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Mas o carnaval tem raízes ainda mais antigas, que nos levam a povos que existiram na Antiguidade.
Festejos da Antiguidade
Na Mesopotâmia, dois festejos podem ser mencionados: as sacéias, uma celebração em que um prisioneiro assumia, durante alguns dias, a figura do rei, vestindo-se como ele, alimentando-se da mesma forma e dormindo com suas esposas, sendo ao final chicoteado e depois enforcado; e a festa ao deus Marduk, onde o rei perdia seus emblemas de poder e era surrado na frente da estátua da divindade em sinal de submissão.
Outra raiz tem a ver com o culto à deusa Ísis no Império Romano. E você pode se perguntar: “Mas, Isis não era uma deusa egípcia?”. Sim, ela era, mas há algo sobre a cultura romana que você pode não saber: por meio das intensas trocas com os povos orientais, os romanos aprendiam e reproduziam práticas e cultos religiosos.
Assim foi com a deusa Isis, que chegou em Roma por meio de comerciantes orientais e também por meio de escravizados, que traziam e difundiam seu culto em terras romanas.
E tem outra característica: ao conquistar novos territórios, os romanos não destruíam a cultura local, mas a assimilavam. Assim, era frequente o culto a deuses e localidades dominadas, como uma espécie de respeito e apreço pela religião dos dominados.
De um modo ou de outro, Isis seria romanizada e cultuada na terra de César.
Um desses cultos era o Navigium Isidis (o navio de Isis), uma festa religiosa anual que ocorria no dia 5 de março. No festejo, a imagem da deusa era levada para a praia para abençoar o início da temporada de velejamento.
O escritor e filósofo Apuleio descreve este festival no livro XI do seu livro Metamorfoses. Uma procissão leva um carro ricamente enfeitado com a imagem de Isis, carregando oferendas que seriam entregues à deusa, pedindo-lhe proteção aos navegantes.
Entre as tribos nórdicas, um ritual similar ocorria em homenagem a Nerto, divindade ligada à fertilidade. Com sua imagem colocada em um barco com rodas, uma procissão de pessoas fantasiadas seguia rumo a um lago, onde faziam um ritual de purificação.
Quem relata este costume é o historiador romano Tácito, em seu livro Germânia. Conta ele que o festejo tinha a satisfação sexual como objetivo, antes do início de um período de jejum que vinha a seguir.
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Algo parecido acontecia entre os gauleses. Antes do período de jejum, eles praticavam um festim chamado de carne levale, ou “adeus à carne”. Entre banquetes e cânticos na grande festa de inverno, eles se preparavam para um período de abstinência.
A propósito, festas com muita comida, bebida e música eram marcantes na Roma Antiga. Os bacanais, por exemplo, eram festejos dedicados ao deus do vinho, Baco (ou Dionísio, para os gregos), marcados pela embriaguez e pela entrega aos prazeres da carne.
Havia ainda, em Roma, a Saturnália e a Lupercália. A primeira ocorria no solstício de inverno, em dezembro, e a segunda, em fevereiro, que seria o mês das divindades infernais, mas também das purificações. Tais festas duravam dias, com comidas, bebidas e danças. Os papéis sociais também eram invertidos temporariamente, com os escravos colocando-se nos locais de seus senhores, e estes colocando-se no papel de escravos.
Mas nossa história só vai ficar completa com a entrada da igreja no carnaval.
O carnaval e a Idade Média
Durante séculos, estes costumes foram praticados na Europa, mesmo após a queda do Império Romano e o advento da Igreja como principal instituição no Medievo.
Um cristianismo popular, muito praticado por camponeses nos espaços rurais, mesclava os ritos antigos com as novas práticas cristãs. Daí que eram comuns os festejos em honra à colheita e a fertilidade mesclados com eventos cristãos na mesma ocasião.
Podemos observar o costume da “Festa dos Tolos”, uma comemoração que se iniciava dentro da Igreja e se espalhava para a população. Durante os quatro dias que antecediam a Quaresma, período de preparação que antecede a Páscoa na tradição cristã, a ordem hierárquica do mosteiro era invertida, e o mundo virava de ponta a cabeça: o coroinha virava o bispo, o bispo virava o coroinha. Missas divertidas eram feitas, regadas a comida e bebida à vontade.
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Ao final, saíam os religiosos pela cidade ou vilarejo em uma carroça jogando frutas podres, ou mesmo fezes, em quem viam pela frente.
Os próprios fiéis já estavam pulando a brincadeira do lado de fora do mosteiro, com fantasias, músicas, bagunça e muita comida.
A principal fonte de conhecimento sobre esse assunto é um manual redigido, por volta do ano de 1200, pelo arcebispo de Sens, Pierre de Corbeil, chamado de “Ofício da festa dos bobos”. Ele inicia com estes quatro versos: “Todos os anos,/ a cidade de Sens/ celebra a festa dos bobos,/ segundo antigos costumes,/ o que alegra o chantrado;/ contudo, toda a glória deve ser/ para o Cristo circuncidado!”
Condenada por alguns e aclamada por outros, a festa seguiu até a Era Moderna. Seus defensores na Igreja alegavam que a brincadeira dos Tolos servia para reafirmar a fé cristã, ao permitir um período de descontração antes do período de jejum e oração da Quaresma.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Brasília: Hucitec, 2010.
FANTACUSSI, Vanessa Auxiliadora. O culto da deusa Ísis entre os romanos no século II – representações nas Metamorfoses de Apuleio. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras
de Assis – Universidade Estadual Paulista, 2006.
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: Editora UNESP, 2003.