Imagem: Anita Malfatti e Monteiro Lobato em meados de 1917
A coragem de uma jovem artista de expor sua arte, revolucionária para a época, esbarrou na aridez e misoginia de um escritor crítico às vanguardas europeias.
Pablo Michel Magalhães Mestre em História - UEFS Especialista em Filosofia - UCAM Licenciado em História - UPE
Em virtude das comemorações dos 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, reli algumas trajetórias dos grandes artistas que compuseram esse movimento vanguardista no Brasil.
Há nomes conhecidos que se sobressaem. Mário de Andrade, um apaixonado pelo Brasil profundo e pelas regionalidades, criador de Paulicéia desvairada e Macunaíma; Oswald de Andrade, criador do Movimento Antropofágico que visava “engolir” as formas estrangeiras e regurgitar a moderna arte brasileira; Tarsila do Amaral, pintora mundialmente reconhecida e autora de obras como o Abaporu, um clássico da arte moderna.
Mas, num cantinho, pouco lembrada, até mesmo negligenciada, está Anita Malfatti. Talvez, a menos citada pela memória popular, e até mesmo nas bancas escolares.
Uma pena. Sem ela, não existiria Semana de 22. Sua inquietação seria um marco fundamental para o modernismo no Brasil, e sua luta contra a misoginia um importante capítulo na História do Brasil.
Anita, mulher, jovem, pioneira
Anita Malfatti era ainda uma jovem estudante de pintura entre os anos de 1910 e 1913.
Esteve na Alemanha antes da deflagração da 2a Guerra Mundial e teve contato com a obra de artistas revolucionários, como Van Gogh, Munch e Kandinsky.
No Museu de Dresden encontrou um local de aprendizado e descobertas variadas.
Retornando ao Brasil, diante dos rumores de guerra na Europa, Anita organizaria sua primeira exposição, intitulada “Estudos de pintura”. Seu desejo era concorrer a uma bolsa de estudos do governo paulista, e essa mostra seria uma espécie de cartão de apresentação.
Anita registraria suas impressões num diário pessoal, com relatos do que ela julgou interessantes sobre sua exposição.
Chamam atenção os registros de comentários machistas de alguns visitantes, que diziam que os quadros pareciam obra de um homem, e que nunca uma “signorina” poderia ser a autora de algo que “claramente” era trabalho de uma pessoa do sexo masculino.
A repercussão da amostra não foi grande, mas Anita receberia uma menção no Correio Paulistano, com elogios ao seu “grande brilhantismo”.
Sem muitas perspectivas na cidade de São Paulo, provinciana e extremamente conservadora nos anos 1910, Anita foi continuar seus estudos em Nova York.
Lá, ela teria contato com expoentes da arte moderna, como o pintor cubista Juan Gris, o escritor russo Maksim Gorki, a bailarina estadunidense Isadora Duncan e o artista plástico francês Marcel Duchamp, desenvolvedor da concepção artística ready-made. Um conjunto de artistas expatriados, foragidos ou perseguidos, que criaram uma concepção de arte moderna pulsante e envolvente.
Com a ideia de experimentar e criar uma arte provocativa, Anita foi em busca de um estágio com o pintor e filósofo Homer Boss, que abrira a Independent School of Art, um espaço livre de criação e invenção. Ela se encontraria ali, cercada de estímulos e provocações.
Em 1916, ao fim do ano letivo, Malfatti retornaria ao Brasil, com milhares de ideias e obras-primas da pintura brasileira: O homem amarelo, A boba, O japonês, Uma estudante, A mulher de cabelos verdes, A estudante russa.
Em São Paulo, as primeiras reações de familiares e amigos refletiam o clima provinciano e conservador do país. Segundo a própria Anita, em entrevista à Revista Anual do Salão de Maio:
“Quando viram minhas telas, todos acharam-nas feias, dantescas, e todos ficaram tristes, não eram os santinhos dos colégios”. Ato contínuo, ela guardaria as obras.
Monteiro Lobato, da cancela de sua fazenda
Nesse meio tempo, Monteiro Lobato foi de fazendeiro do Vale do Paraíba paulista a colunista no jornal O Estado de São Paulo.
Sua entrada para o jornal foi interessante. Como leitor, enviou cartas ao periódico tecendo críticas a uma matéria. Sua contundência verborrágica chamou a atenção dos editores que, não só publicaram as cartas na íntegra, como o convidaram a assumir posto no jornal.
Seus textos eram marcadamente conservadores e seu posicionamento nacionalista o colocava contra as influências culturais ditas modernas. Sua misoginia seria evidenciada especialmente no caso contra Anita.
Lobato e Malfatti se encontrariam, uma vez, numa exposição sobre o Saci Pererê, organizada pelo escritor.
Esta exposição era fruto das pesquisas que Lobato havia feito com os leitores do Estadão. Era um esforço de resgate e valorização da cultura tida como genuinamente brasileira, que, segundo o escritor, vivia obscurecida pela cultura estrangeira que era reproduzida em excesso pelos meios cultos paulistas.
A pintora colaborou com uma gravura do diabrete folclórico. Isso deu ensejo para a 1ª crítica de Lobato: ele diria que sua gravura era um “degringolismo” e não arte de fato. Além disso, no mesmo artigo, o escritor daria uma alfinetada em Anita e nos demais modernistas, dizendo que:
Como boa parte da população conservadora com acesso à arte, Monteiro Lobato reverbera preconceitos e misoginia em prol de uma arte simétrica, harmoniosa e naturalista.
O efeito da crítica do escritor, contudo, iria gerar um efeito contrário: a arte de Anita começou a ser mais discutida nos meios intelectuais paulistanos. Foi por conta dessa crítica que Di Cavalcanti, um dos maiores artistas brasileiros do século XX, e demais jornalistas e artistas se interessaram em conhecer a jovem pintora.
A exposição de 1917
Em 1917, estimulada por tantos curiosos e amigos, Anita faria a exposição de seus trabalhos. 53 de suas obras foram colocadas na mostra, organizada na rua Líbero Badaró, 111. Uma curiosidade: era o mesmo salão onde a exposição dos Sacis de Lobato havia sido realizada.
Os artigos na imprensa davam conta de uma pintura diferente, mesmo estranha ou bizarra, mas mantinham no texto o reconhecimento ao talento da jovem, com seus traços, deformações e choque de cores.
Na edição de 14 de dezembro do Correio, a matéria dizia que “a exposição […] toda ela de arte moderna, apresenta um aspecto original e bizarro”. No dia 16, a matéria do mesmo jornal saudava os espectadores, que não se mostravam intolerantes com as novidades trazidas por Anita.
Oito obras haviam sido vendidas nos primeiros dias, apesar de uma diminuição no público decorrente de uma chuva de verão que caiu em São Paulo naqueles dias.
Tudo ia bem, até Lobato escrever uma dura crítica, mergulhada em misoginia, no Estadão, comparando o trabalho dela à “paranóia ou mistificação” e “caricatura”.
O artigo é recheado de ironias à Anita e ao movimento modernista, como sua explicação de uma espécie de artistas:
Em outra passagem, ele diz que Anita fora “seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura”.
Ao final, Monteiro Lobato ainda insinua que mesmo os apoiadores de Anita achavam sua arte bizarra, mas não o diriam em sua frente, apenas por trás.
Você pode ler, se quiser, o texto completo aqui.
O escândalo abalou a sociedade paulistana. A exposição passaria a ser visitada por críticos que debochavam dos trabalhos e ridicularizavam a artista, que sentiu e muito o peso.
Contudo, foi aí que um grupo de artistas admiradores do trabalho dela se reuniram numa espécie de núcleo de defesa. Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Di Cavalcanti e Guilherme de Almeida faziam a linha de frente contra os ataques.
O que me conforta hoje, estudando e escrevendo sobre este assunto, é saber que, naquele momento de aperto, Anita não esteve só.
Os ataques misóginos de Monteiro Lobato não ficariam sem uma resposta. A exposição de Anita Malfatti revolucionou a arte paulista, sendo o ponto inicial para a Semana de Arte Moderna de 1922.
Misoginia é coisa do passado?
Os dados coletados por diversas instituições especializadas reforçam um quadro deplorável da sociedade brasileira de hoje: a desigualdade de gênero.
De um modo geral, por mais que as mulheres brasileiras tenham 34% a mais de probabilidade de se formar no ensino superior do que os homens, de acordo com o relatório Education at Glance (2019) da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), suas chances de conseguir emprego permanecem sendo menores.
De acordo com dados levantados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 2018, a participação da mulher no mercado de trabalho é cerca de 26% menor do que a dos homens, e em 2019 as mulheres ainda ganhavam 20,5% a menos do que os homens, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
Neste mesmo ano de 2019 aconteceu, inclusive, um sensível aumento na desigualdade salarial entre os gêneros, ao passo em que apenas 13% das empresas do Brasil tinham mulheres em cargos de alto destaque.
Eu sou homem, e posso apenas imaginar de uma forma vaga as dificuldades de ser mulher numa sociedade que exclui, rebaixa e minimiza o feminino. Os dados ajudam nesse entendimento, mas as múltiplas trajetórias de mulheres possuem realidades tão diversas que, ainda assim, não conseguiríamos dimensionar esse abismo da misoginia.
A trajetória de Anita Malfatti é uma dentre milhões de outras trajetórias de mulheres, de diversas classes sociais, de etnias e raças outras, que sobrevivem à essa estrutura machista e à misoginia.