Pintura do século 19 mostra escravizadas trabalhando (Arquivo Nacional)
No Ceará, movimento abolicionista prévio incluiu greve liderada pelos jangadeiros em 1881, influenciando a extinção da escravidão em 1884. Diálogo entre o governo e grevistas, sob Sátiro Dias, contribuiu para o desfecho. Movimento contou com apoio popular e precedeu a abolição oficial no Brasil.
Da redação com informações da BBC Brasil
Há 140 anos, o Polytheama Fluminense, destacado teatro do Rio de Janeiro, testemunhou um evento marcante em 25 de março de 1884. Nessa noite histórica, ecoou pela primeira vez a Marselhesa dos Escravos, uma marcha para orquestra, durante uma celebração em honra à libertação do Ceará, conforme registrado pelo antigo jornal Rua do Ouvidor.
Antônio Cardoso de Menezes (1848-1915), um dos eminentes músicos do Segundo Império Brasileiro, compôs e conduziu essa peça musical memorável.
Esse acontecimento ressoou longe, pois coincidiu com a abolição da escravidão na província do Ceará, quatro anos antes da promulgação da Lei Áurea em todo o país. Sátiro de Oliveira Dias (1844-1913), então presidente da província, proclamou a emancipação dos escravos, declarando que “a província do Ceará não possui mais escravos”.
José do Patrocínio (1853-1905), destacado nome do movimento abolicionista, comunicou essa notícia a Victor Hugo (1802-1885), em Paris, observando que representava um avanço civilizacional.
Segundo a historiadora Martha Abreu, o ocorrido no Ceará marcou o início efetivo do movimento abolicionista no Brasil, inspirando outras províncias a seguirem o mesmo caminho.
Para Paulo Henrique Martinez, historiador, a abolição do trabalho escravo passou a ser uma realidade concreta no Brasil após esse evento, representando uma opção política vantajosa para os grandes proprietários rurais.
Victor Missiato, por sua vez, destaca a importância desse marco como um avanço político institucional, evidenciando a flexibilidade e autonomia provinciais dentro do império.
Outro pesquisador é Vitor Hugo Monteiro Franco, que enfatiza a necessidade de compreender a abolição como resultado de uma série de lutas sociais e não como um evento isolado, destacando o papel dos diversos atores envolvidos nesse processo.
Economia da escravidão
O pioneirismo da província cearense na abolição da escravidão se deve, em parte, ao contexto econômico e social específico da região. A diminuição da população escrava, impulsionada pela venda de escravos para outras áreas, foi acelerada pela grande seca dos anos 1877-1879, deixando a classe dominante local menos dependente economicamente da escravidão.
A dinâmica econômica do Ceará revelou a inviabilidade da mão de obra escrava, enquanto a atuação de associações e líderes abolicionistas ganhava força, especialmente em um contexto de mudanças políticas singulares na província.
O contexto nacional também influenciou, com leis restritivas ao tráfico negreiro incentivando um comércio interno de escravizados, tornando o nordeste um grande fornecedor de mão de obra para o sudeste em expansão, principalmente para a cafeicultura. No entanto, no Ceará, onde a diversificação econômica e a presença indígena eram mais marcantes, a dependência da mão de obra escrava era ainda menor.
Movimento abolicionista
No entanto, é crucial considerar o contexto social, político e histórico, que desempenhou um papel significativo no movimento abolicionista no Ceará. Desde 1850, a província testemunhou um intenso movimento político e intelectual que influenciou a opinião pública e contribuiu para a disseminação das ideias abolicionistas.
O pesquisador Victor Missiato destaca a presença de um forte movimento político-intelectual no Ceará, que absorvia e promovia ideias abolicionistas vindas de outras regiões. Martha Abreu ressalta que, a partir dos anos 1880, o movimento abolicionista ganhou força em todo o país, especialmente entre os setores intelectuais e urbanos, incluindo irmandades negras e associações de trabalhadores.
Para o historiador Paulo Henrique Martinez, é preciso enfatizar a participação da elite econômica no abolicionismo cearense, com representantes influentes que mantinham contato e influência política no Rio de Janeiro, sede do Império. Ele menciona a formação de agremiações abolicionistas na província no início da década de 1880, destacando a criação da Confederação Abolicionista em 1883, da qual a Sociedade Abolicionista Cearense fez parte.
Jangadeiros e a escravidão
Na província, houve um antecedente crucial para a luta abolicionista. Venancio destaca que, apesar das condições favoráveis, o papel do movimento abolicionista em 1884 não deve ser esquecido. Ele ressalta que o abolicionismo existia no Ceará e contava com apoio popular, como demonstrado pelo caso dos jangadeiros.
Abreu observa que os jangadeiros foram um exemplo importante do movimento abolicionista na região. Em janeiro de 1881, os jangadeiros do Porto de Fortaleza entraram em greve, fechando o porto ao tráfico de escravos, sob liderança da Sociedade Libertadores Cearense. Esse movimento teve altos e baixos até 1884, incluindo confrontos com a polícia.
A situação começou a se acalmar quando Sátiro Dias assumiu o governo da província em 1883. Ele simpatizava com o abolicionismo e iniciou diálogos com os grevistas. A abolição da escravidão no Ceará acabou sendo uma solução política habilidosa durante seu mandato.