Recorte de cartaz de divulgação do filme Watchmen (2009)
Como as HQs expressam a Guerra Fria? Da paranoia nuclear à crítica política, elas refletem o contexto e influenciam opiniões.
Prof. Dr. José Maria Almeida Neto Doutor e Mestre em História (UFC)
Como citar este artigo:
ALMEIDA NETO, José Maria. A construção da Guerra Fria na década de 1980, a partir das histórias em quadrinhos de Batman e Watchmen (Artigo). IN: O Historiante. Publicado em 16 de Abril de 2013. Disponível em: https://ohistoriante.com.br/2024/03/a-construcao-da-guerra-fria-batman-e-watchmen/. ISSN: 2317-9929.
Em que sentido um objeto de entretenimento como as histórias em quadrinhos (HQs) podem expressar algo sobre determinada realidade? Existe essa relação dos mesmos com a Guerra Fria? Ao final da Segunda Guerra Mundial surgem como preocupações o medo e a apreensão de um novo conflito militar. Estados Unidos (EUA) e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), nações que ganham ênfase, iniciam o período histórico do século XX designado como “Guerra Fria”.
Um discurso proferido por Winston Churchill (chefe de Estado do Reino Unido) acirra os ânimos entre EUA e URSS. Abaixo segue um trecho de sua fala no ano de 1946:
Nesse cenário, como acontecem as políticas que abriram o processo de bipolarização da Guerra Fria? Os EUA em 1947 anunciam o Plano Marshall, que incluía empréstimos de longo prazo, juros reduzidos, concessão de tecnologias e investimentos volumosos, além de estimular a exportação norte-americana, principalmente a países da Europa Ocidental (França, Inglaterra e Alemanha Ocidental). Em resposta, a URSS cria o Cominform (Agência Comunista de Informação) com o objetivo de fortalecer o movimento comunista no restante do mundo, principalmente na Europa Oriental.
A partir daí, a Guerra Fria efetivamente está lançada para o mundo, onde o capitalismo norte-americano e o socialismo soviético buscam maneiras de se legitimar e alinhar os outros países à sua órbita de influência e aos seus tipos de “fazer a sociedade”.
Diante disso, convém questionar: a Guerra Fria interfere apenas no plano econômico e nas relações políticas do globo? Ou, processualmente, as relações da cultura e das sociedades também passam por alterações?
Por se estabelecer como um conflito no âmbito das estratégias, e, sobretudo, da propaganda, a cultura e a maneira dos sujeitos de se perceberem acabam por mudar, bem como os anseios de seus cotidianos.
Nosso estudo se voltará para os anos 1980, que ficaram conhecidos, do ponto de vista das relações internacionais, como relaxamento que culmina na política da Deténte. Este período, se analisado a partir da representação norte-americana, faz gerir a Guerra Fria por seus próprios “olhos” ianques. São anos de dúvida, onde se expressam, no cotidiano americano, todo um jogo de conflito de olhares, críticas e posições políticas. A cultura e o entretenimento, como a produção e leitura das HQs, fazem parte desses espaços de debates e são alterados profundamente.
Atente para a figura acima. É o trecho de um episódio de Batman – O cavaleiro das trevas (Entrevista do presidente americano aos jornalistas), criado pelo cartunista e roteirista Frank Miller na década de 80. Na charge, a abordagem se faz com crítica à figura do presidente americano Ronald Reagan, que era contestado por ser uma figura alegórica e de espetáculo. Nota-se um posicionamento crítico e político do autor em relação às maneiras da governabilidade do presidente Reagan.
A história ficcional narrada por Frank Miller cria um diálogo com os textos históricos, tendo personagens que são comparações do contexto da Guerra Fria. Na História de Batman, a fictícia cidade de Gotham City é a alegoria das metrópoles caóticas e conturbadas pela política de Estado vigente.
Percebe-se como o contexto da Guerra influenciou as produções da época e como estas produções influenciaram a imagem desse momento. Ao mesmo tempo em que as fabricações de quadrinhos passam a colocar em suas histórias as discussões e anseios populacionais, estas passam a formar opinião e divergências, lançando novos olhares à situação do período.
É importante perceber que, em seu interior, a sociedade americana não estava completamente homogênea, havia discordâncias em relação ao apoio tanto ao presidente como aos rumos da política dentro da Guerra Fria. A produção de HQ mostra essas divergências tanto nas narrativas de Batman como em outra série: Watchmen (produzido entre 1986 e 1989).
Quando pensamos em histórias em quadrinhos, a imagem que nos remete à lembrança é de heróis virtuosos, de narrativas triunfantes e vitórias preparadas. Pois bem, Watchmen, tal como Batman – O cavaleiro das trevas, faz parte de um novo formato dos quadrinhos, direcionados ao público adulto: a graphic novel. Esse gênero tem histórias complexas, com personagens sombrios e problemas de personalidade e identidade. Ante a isso, essas HQ’s da década de 1980 exprimem problemas e inquietações do seu tempo. É nesse cenário queWatchmen, do produtor Alan Moore, acaba por elaborar severas críticas à Guerra Fria, ao governo americano, à sociedade e à relação do capitalismo com o socialismo. Mesmo em seu teor fictício, num universo de narrativa diferente, percebe-se e trabalha-se a ideia da paranoia nuclear levada a seus fins.
A ficção Watchmen, na figura acima (Planejamento de guerra), se compõe em seis vigilantes envolvidos e tentando desvendar a morte de um de seus parceiros. São pessoas problemáticas que ajudavam o Estado americano, mas com a falência e descrédito do governo, os vigilantes são hostilizados e precisam conviver numa cidade cheia de caos e trucidada pela violência.
Portanto, é interessante ver como a cultura e as formas de “ver” dos indivíduos vão se transformando. A Guerra Fria e a década de 1980 são o expoente dessa realidade. Do temor governamental aos produtos de massa e mídia, as pessoas exprimiam a sua forma de representar e vislumbrar a sociedade americana.
Os contextos e os conjuntos se ligam. A manutenção da ordem nesse mundo bipolar gerava sentimentos diversos e os rumos políticos se faziam inconstantes. O já citado presidente Ronald Reagan eleito em 1981 governa a nação americana em notável apreensão. Nos primeiros anos de mandato, evidencia-se um grande acirramento e investimento bélico, seja de sua nação, seja de sua maior rival: no que fora denominado Guerra nas Estrelas. O fato teve peso de se propagar na população, e por consequência, nas práticas dos indivíduos.
No seu segundo mandato, Reagan precisa demandar acordos de tranquilidade e a política de abertura do chefe de Estado soviético Mikhail Gorbachev é um importante canal para esse apaziguamento. Em dezembro de 1987, os dois líderes assinam um acordo de redução do potencial bélico. A Guerra vai perdendo corpo, mas suas permanências e efeitos adentram na vida e nas práticas intelectuais dos indivíduos.
DICAS DE FILMES Filme: Batman- O cavaleiro das Trevas (EUA, 2008). Sinopse: Batman está inserido em um novo cenário. Agora os heróis de Gotham City não são mais vistos com bons olhos. Após dois anos do surgimento do homem-morcego, ele conta com o auxílio de outras forças para combater o maquiavélico Coringa. Comentário: Numa fiel adaptação da consagrada graphic novel, o filme retrata uma sociedade mergulhada no caos e na violência decorrente de um Estado corrupto e ineficiente. Filme: Watchmen (EUA, 2008). Sinopse: Watchmen é situado em uma América alternativa, no ano de 1985, onde super-heróis fantasiados é parte da teia que compõe a sociedade normal do dia-a-dia. Lá, o “Relógio do Juízo Final” – que mostra a tensão entre os Estados Unidos e a União Soviética – sempre está marcando cinco minutos para meia-noite. Comentários: Uma saga marcante, de uma complexidade de enredo que encanta e faz refletir sobre os sujeitos e a construção em torno dos adjetivos que circundam os heróis. A trama dessa realidade paralela instiga questões interessantes de imaginário e abstração na década de 1980.