O holocausto no Congo Belga

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Pablo Michel Magalhães
Mestre em História - UEFS
Especialista em Filosofia - UCAM

No século XIX, o Congo tornou-se possessão de Leopoldo II, monarca belga, que empreendeu diversas atrocidades sob o título de “ação humanitária”

A Bélgica era um país recém-nascido no ano de 1830. Sua independência, fruto da Revolução Belga, proporcionou a sua separação do Reino Unido dos Países Baixos, instuindo, desta forma, o Reino belga. Obviamente, suas limitações geográficas não lhes permitia sonhar na construção de uma grande potência europeia.

É preciso lembrar que o século XIX é marcado pela noção de Império. França, Grã-Bretanha, Alemanha, Áustria, Rússia são alguns dos países que, em uma disputa constante, concorriam para a primazia dentre as nações mundiais.

O imperialismo, prática que tinha como fim o processo de dominação, exploração e enriquecimento de uma metrópole sobre demais territórios colonizados, ganhava no século XIX outras cores: o cinza-negro das fumaças das indústrias e a noção de, além da exploração, a formação de um mercado consumidor que se alimente da produção industrial de cada país dominante.

The Plumb-pudding in danger; – ou – State Epicures taking un Petit Souper, de James Gillray

Desta forma, territórios na América central e do sul, África e Ásia tornaram-se o local de ação desses impérios ou pretensos impérios que almejavam despontar nesse cenário mundial bastante imbrincado.

O termo “imperialismo” também é muito utilizado para fazer referência ao processo de colonização da África, Ásia e Oceania, que se iniciou na segunda metade do século XIX. Esse processo também é conhecido entre os historiadores como neocolonialismo. Durante o neocolonialismo, segundo o historiador Eric Hobsbawm, cerca de 25% das terras do planeta foram ocupadas por alguma potência imperialista.

Eric Hobsbawm também exemplifica por meio de dados estatísticos a dimensão da expansão imperialista na época. As potências imperialistas, (França, Grâ-bretanha e Alemanha especialmente) tiveram um aumento significativo no tamanho de seus territórios e isso foi motivado pela dominação e a criação de colônias na Ásia, África e Oceania.

Contudo, na Bélgica, os debates seguiram um outro rumo.

Leopoldo II e as aspirações imperialistas

Ao chegar ao trono, o monarca belga tinha aspirações maiores do que seu próprio reino.

Leopoldo II da Bélgica

Com uma população dividida entre flamengos (holandeses) e valões (franceses), Leopoldo II sabia que, territorialmente, era impossível crescer na Europa. Por esse motivo, voltou suas atenções para as possessões coloniais, fazendo algumas tentativas nos demais continentes.

Sem sucesso na América do Sul, muito menos na Ásia, seu foco voltou-se para a África, na região do Congo, localizada na floresta tropical da África Central, conhecida como Selva do Congo. Seu nome deriva do grupo étnico predominante na região, os congos que falam o quicongo e ao reino que fundaram em 1400 – o Reino do Congo.

Contudo, a Bélgica era um reino constitucional, e o parlamento não viu com bons olhos a empreitada proposta por Leopoldo. Para eles, colonizar uma região em outro continente significaria gastos supérfluos com algo que não daria retorno para a população belga.

Isso gerou um fato até então inédito: ao contrário dos demais impérios que controlavam determinadas possessões geográficas em determinados continentes, no Congo a possessão era de pessoa física. Leopoldo tornou-se “dono” da região, a partir da Conferência Geográfica Internacional de Bruxelas, em 1876. Seu lobby foi centrado em empreender, no Congo, uma missão científica e humanitária, com ares de expedição internacional de caráter pacífico.

Ganhou o aval e a permissão para o projeto na Conferência de Berlim (1885) sendo agraciado não apenas com uma imensidão de terras de 2 milhões de km², mas também com o controle sobre a vida de milhões de pessoas.

No fim das contas, a missão humanitária mostrou ser o completo oposto.

Genocídio do povo congolês

O marfim e o látex eram os produtos cobiçados por Leopoldo quando enviou os primeiros funcionários para a região. O primeiro, servia como base para a fabricação de artigos de luxo e decoração; o segundo, matéria-prima para a borracha e seus usos derivados.

A despeito de uma série de compromissos, como lutar contra a escravidão e promover o livre comércio na colônia, incluindo a isenção de impostos sobre produtos importados, em 10 anos de exploração e massacres, o rei confiscou terras e aldeias inteiras de congoleses, fazendo da escravidão a principal forma de trabalho em seus domínios.

Leopoldo instituiu um pesado monopólio a ponto de tornar-se em uma década o senhor do látex e do marfim do mundo. Isso conseguido com violência e coação sobre as tribos locais. Quando estas não conseguiam atingir a meta mínima imposta pelo monarca, entrava em ação a Força Pública, uma instituição que executava todo o tipo de coação e violência com os congoleses para que estes trabalhassem mais.

Uma de suas ações recorrentes era cortar membros de pessoas da tribo como forma de punição e coação para que produzissem mais. As mãos cortadas, inclusive, transformaram-se em atestado de produtividade para os oficiais belgas.

Jovens congoleses com a mão cortada.

A prova disso são várias fotos disponíveis já em domínio público, onde se veem homens, mulheres e até crianças mutiladas. A cena presenciada pelo missionário presbiteriano William Sheppard é chocante:

“No dia em que chegou ao acampamento dos saqueadores, chamou-lhe a atenção um grande número de objetos sendo defumados. O chefe ‘nos levou até uma estrutura de paus, sob a qual queimava um fogo lento, e lá estavam elas, as mãos direitas, contei-as todas, 81’. O chefe disse a Sheppard: ‘Veja! Aqui está nossa prova. Eu sempre tenho que cortar a mão direita das pessoas que matamos, para poder mostrar ao Estado quantas foram’. Com muito orgulho, mostrou a Sheppard alguns dos corpos de onde as mãos tinham saído. A fumaça era para preservar as mãos no calor e umidade, já que podia levar dias, ou semanas, até o chefe poder exibi-las ao oficial encarregado e receber os créditos por suas matanças”.Trecho do livro “O Fantasma do Rei Leopoldo”, do escritor polonês, naturalizado britânico, Adam Hochschild.

Estupros, assassinatos e cenas macabras como a exibição de crânios de congoleses mortos como estratégia de intimidação e submissão foram algumas das estratégias utilizadas pelos comandados do rei Leopoldo II numa das mais cruéis experiências coloniais do século XIX.

Pai diante da mão e do pé amputados da filha

Contudo, denúncias passaram a ser feitas e a circular na Bélgica e em toda a Europa. Nomes reconhecidos como os escritores Mark Twain e Arthur Conan Doyle se manifestaram e promoveram a Associação pela Reforma do Congo. Isso impulsionou o parlamento belga que, em 1908, tomou posse da colônia africana, rebatizando-a para Congo Belga. Foram 23 anos de tirania, exploração e enriquecimento para o monarca e diversos grupos apoiadores.

Ironicamente, Leopoldo II jamais pôs os pés em seu latifúndio nos 44 anos de reinado.

Sensivelmente, houve uma modificação na gestão. Mas, na prática, a escravidão e a humilhação foram mantidas. Mesmo que avançoes na Saúde e na Educação tenham sido desenvolvidos, permanecia a dominação branca europeia escravocrata no território.

Foi somente com a independência, em 1960, que os congoleses puderam se livrar do terror e dos trabalhos forçados impostos pelos europeus.

Ao todo, foram 8 milhões de congoleses dizimados pela dominação e exploração belga, num holocausto pouco debatido e evidenciado para o grande público.

Morto e 1909, seu cortejo fúnebre foi acompanhado de vaias até a sepultura. O poeta norte-americano Vachel Lindsay traduziu bem a impressão deixada por Leopoldo, após sua morte:

“Ouçam como grita o fantasma de Leopoldo
A queimar no inferno por suas hostes sem mãos.
Escutem como riem e berram os demônios
Lá no inferno, a lhe cortar fora as mãos”.

Leia também:

Livros "A Era dos Impérios" e "A Era do Capital", do historiador Eric J. Hobsbawm

Livro "O fantasma do rei Leopoldo", do escritor Adam Hochschild 

Artigo "O Holocausto negro no Congo", de Israel Júnior Silva - link https://ceert.org.br/noticias/violencia-seguranca/3328/o-holocausto-negro-no-congo

Matéria "ESCRAVAGISMO, COLONIZAÇÃO E GENOCÍDIO: AS ATROCIDADES DO CONGO BELGA", assinada por Fernando Duarte, da revista Aventuras na História - link https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/genocidio-africa-congo-belga-leopoldo-ii.phtml