A historicidade da suástica

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Usos e representações da suástica nazista no Brasil revelam um atentado à democracia. É preciso lembrar que o símbolo possui uma historicidade.

Pablo Michel Magalhães
Mestre em História - UEFS
Especialista em Filosofia - UCAM

Como citar este artigo:
MAGALHÃES, Pablo M. C. A. A Historicidade da suástica (Artigo). IN: O Historiante. Publicado em 18 de Junho de 2021. Disponível em: https://ohistoriante.com.br/2021/06/a-historicidade-da-suastica/. ISSN: 2317-9929.

É inegável que, de certa forma, a ascensão de grupos ligados à extrema direita em diversos países ao redor do mundo tem associação com o descontentamento de parte da população com a prática política.

Nos Eua e no Brasil, por exemplo, indivíduos oriundos destes grupos conservadores exploraram os casos de corrupção recentes como pano de fundo para criticar a própria república e a democracia.

No entanto, engana-se quem acredita que este movimento é novo, ou pelo menos que grupos de extrema direita alinhados ao nazismo e ao fascismo tenham uma história curta em países democráticos.

Da Ku Klux Klan em todo o século XX, passando pelos grupos supremacistas e skinheads nos anos 1980 e 1990, até as manifestações de rua pedindo fechamento de congresso e novo AI-5, a linha de crescimento de um movimento vil e perigoso possui uma série de ramificações em anos.

Células neonazistas no Brasil

Em 2014 a Polícia Civil apreendeu em Itajaí materiais que faziam apologia ao nazismo (Foto: Victor Pereira, BD, 2014)

A antropóloga Adriana Dias, doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do tema, monitora há 18 anos movimentos de células extremistas de direita no país.

De acordo com ela, em reportagem a DW Brasil, só o estado de Santa Catarina tinha, até novembro de 2020, 85 células neonazistas organizadas em ação. Em junho daquele mesmo ano, o estudo dela indicava que eram 69 — ou seja, em quatro meses houve um crescimento de 23% na quantidade desses grupos.

Em número absolutos, Santa Catarina só tem menos células neonazistas do que São Paulo, onde estão em atividade 89 grupos. Considerando as populações, os catarinenses têm a maior concentração desses grupos em atividade. São 11,8 células neonazista por milhão de habitante no estado do Sul, contra 1,9 por milhão no do Sudeste.

Mas há também células em atividade em estados do Nordeste, algo ainda mais preocupante para o autor deste texto, também nordestino.

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E é justamente nesse contexto que ontem, 17 de junho deste ano da graça de 2021, mais um episódio no mínimo “estranho” aconteceu num shopping pernambucano. Um jovem, usando uma braçadeira nazista (sim, acredite), desfilou por alguns instantes pelo estabelecimento, na cidade de Caruaru-PE, até ser interpelado por seguranças. A reação foi hostil, e não podemos esperar menos diante de um ato dessa monta.

Contudo, chama a atenção uma das falas do jovem no vídeo, divulgado amplamente no Twitter, Facebook e Instagram:

“Eu estou na minha liberdade”

A partir disso, lanço uma pergunta que será chave da reflexão neste breve artigo: pode alguém exercer sua liberdade constitucional, garantida por lei, exibindo ou ostentando uma suástica nazista em seu braço?

Uma breve história da suástica

Mosaico de suástica na igreja bizantina, escavado em Shavei Tzion, Israel (Wikimedia Commons)

A mais antiga representação deste símbolo está presente em um utensílio datado, segundo especialistas do Museu do Louvre, em Paris, de 7 mil anos antes a.C., encontrado no Oriente Médio. O artefato, um prato de cerâmica, foi localizado na região da antiga Mesopotâmia (atual Iraque), nas escavações do sítio arqueológico de Samarra.

Sua utilização ao longo da História foi extremamente variada, recortada por diversas culturas da Antiguidade oriental.

Na própria civilização mesopotâmica, a suástica aparecia em moedas correntes entre as cidades-estado. Nas civilizações pré-colombianas, podemos identificar o uso do símbolo (com uma grande similaridade) entre os índios navajos e os maias.

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Entre os chineses, a suástica representava o número 10.000 (em mandarim, Wan), que também é usado para representar o todo da criação, no Tao Te Ching, o livro basilar do taoísmo.

A suástica pode também ser encontrada em templos hindus, símbolos, altares, quadros e na iconografia sagrada que há por toda parte, sendo um dos 108 símbolos de Vishnu, o sustentador do universo. Nessa representação, a suástica simboliza os raios do Sol, sem os quais não haveria vida.

O próprio termo advém do sânscrito svastika, que quer dizer “condutora do bem-estar” ou “aquilo que traz sorte”.

A suástica alemã

Bandeiras e estandartes nazistas com a suástica em evento do partido na Alemanha na década de 1930 (Fonte: LIFE)

Das tradições milenares à Alemanha de Hitler, a suástica passaria por uma apropriação indébita que ressignificaria sua imagem.

Inicialmente, podemos apontar o arqueólogo Heinrich Schliemann como personagem principal deste processo, ainda no século XIX.

Este pesquisador alemão foi responsável por uma série de interpretações equivocadas sobre o símbolo a partir de um sítio arqueológico no Estreito de Dardanelos. Schliemann queria encontrar artefatos que apontassem para o local de existência da outrora cidade-estado de Troia.

Na localidade, ele escavou uma série de instrumentos que possuíam em seus ornamentos as suásticas, muito similares a um material por ele encontrado nas proximidades do Rio Oder, na Alemanha.

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Em sua interpretação rasa e enviesada, Schliemann traçou uma ligação entre os gregos e os teutões (povos germânicos), defendendo uma linhagem pura que uniria historicamente os dois povos.

Contudo, antes que o nazismo se apropriasse do símbolo, um movimento exotérico chamado de Sociedade Teosófica, sob a liderança da russa Madame Helena Petrovna Blavatsky, incorporou a suástica entre seus símbolos. Em seu livro A Doutrina Secreta (1888), Blavastsky defende que os arianos seriam a forma mais pura dos seres humanos, e as demais tribos e grupos inferiores ou degenerados.

Ela também profetiza sobre a destruição das “falhas da natureza” raciais à medida que a “raça superior” ascende:

“Assim, a humanidade, raça após raça, realizará seu ciclo de peregrinação designado. Os climas vão, e já começaram, a mudar, a cada ano tropical após o outro, eliminando uma sub-raça, mas apenas para gerar outra raça superior no ciclo ascendente ; enquanto uma série de outros grupos menos favorecidos – os fracassos da natureza – irão, como alguns homens individualmente, desaparecer da família humana sem mesmo deixar um rastro para trás”

Trecho do livro “A Doutrina Secreta”
(p. 446, vol. 2)

Os ensinamentos de Blavatsky incendiaram uma Europa mística do início do século XX, em especial na Alemanha. Lá, o poeta Guido von List e o jornalista Jörg Lanz von Liebenfels, ambos místicos e nacionalistas ultra-conservadores, juntaram os pontos de Schliemann com a teoria da escritora russa e passaram a divulgar e defender a linhagem ariana pura dos alemães, seres naturalmente superiores aos demais, tendo na suástica o símbolo máximo dessa conexão.

E é aqui que chegamos em Hitler. O futuro führer bebeu a fonte mística da suástica, e idealizou uma Alemanha pura, branca e ariana contra os seres degenerados, que deveriam “desaparecer da família humana sem mesmo deixar um rastro para trás”, como diria Madame Blavatsky. O livro “Minha luta” seria a síntese do arianismo, a base ideológica do nazismo, e a suástica sua representação, emplacada em todos os espaços oficiais e não-oficiais da Alemanha.

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A lei Caó

Ao redor do mundo, o uso da suástica nazista é crime previsto em leis nas diversas constituições. No Brasil, utilizá-lo com conotações racistas ou para fazer apologia no nazismo pode dar de 2 a 5 anos de cadeia.

Isso está previsto na lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (que sofreu alteração pela lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997). A norma é originária do PL 52/88, de autoria do ex-deputado Federal Carlos Alberto Caó de Oliveira. O ex-parlamentar, falecido em fevereiro de 2018, foi militante do movimento negro e jornalista, tendo participado, inclusive, da Assembleia Constituinte que redigiu a Constituição de 1988.

No artigo 20, parágrafo 1o, fica claro que:

“Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.”

Lei nº 7.716, 05.01.1989

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Usar uma suástica nazista é liberdade de expressão?

Pensamentos totalitários, bem como manifestaçõe simbólicas que alimentam ideais fascistas ou nazistas, estão longe de representar liberdade de opinião. Além de crime previsto em lei, é preciso atentar para a historicidade dos signos e o perigo de ideologias intolerantes serem toleradas em uma democracia.

O filósofo Karl Popper, em seu paradoxo da tolerância, preconiza o seguinte:

“A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. —Nessa formulação, não insinuo, por exemplo, que devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes; desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente à opinião pública, suprimi-las seria, certamente, imprudente. Mas devemos-nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo que pela força

Trecho do livro “A Sociedade Aberta e seus inimigos”, de Karl Popper

É preciso aprender algumas lições com a História: na República de Weimar, os democratas foram no mínimo condescendentes com Adolf Hitler e o programa intolerante e autoritário do Partido Nazista. Isso permitiu que, pouco a pouco, a serpente fascista tomasse espaços e, ao final, abocanhasse a Alemanha como um todo.

Trazendo a discussão para o caso do jovem no shopping aqui no Brasil: nós não devemos tolerar nem normalizar alguém que desfile por estabelecimentos ostentando uma suástica nazista. Ela carrega em si uma historicidade ligada à preconceito, totalitarismo, violência, racismo e xenofobia (além de uma infinidade de outras “qualidades”).

Não se pode tolerar, muito menos negociar, com nazistas.

Em nota, o shopping se manifestou desta forma:

“O Shopping Difusora informa que, na manhã de hoje, 17/06, um jovem não identificado, foi visto, através do sistema de segurança, com símbolo da suástica na manga do casaco. No momento em que os seguranças do Shopping identificaram o símbolo, iniciaram o procedimento de abordagem e contato com as autoridades competentes para fossem tomadas as providências legais. Neste momento o mesmo deixou o local. O Shopping ressalta ainda que repudia toda e qualquer manifestação de apologia ao nazismo”

Leia também (obras disponíveis na Amazon):

Livro A questão da culpa: A Alemanha e o Nazismo, de Karl Jaspers (CLIQUE AQUI)

Livro Terceiro Reich na história e na memória: Novas perspectivas sobre o nazismo, seu poder político, sua intrincada economia e seus efeitos na Alemanha do pós-guerra, de Richard J. Evans (CLIQUE AQUI)

Livro Caça às Suásticas. O Partido Nazista em São Paulo Sob a Mira da Polícia Política, de Ana Maria Dietrich (CLIQUE AQUI)