Cachaça: uma dose de história
05/07/2013

Moagem de cana no
engenho, Hercules Florence, Museu Paulista da USP, SP
Presente nos mapas dos navegantes europeus desde fins do
século XV, o Brasil foi quase esquecido nas primeiras
décadas do século XVI pela Coroa portuguesa, que não
dispunha nem de gente suficiente no Reino para uma obra
de colonização no vasto território d’além-mar. Com isso,
a costa brasileira era visitada indistintamente por
aventureiros – italianos, holandeses, franceses,
espanhóis... – que se dedicavam à coleta de pau-brasil,
sempre negociando com os índios. A partir da terceira
década do século, no entanto, uma circunstância especial
ajudaria a definir o futuro lusitano das terras do
Brasil: a necessidade de produzir mais açúcar, que
alcançava naquele momento o status de “ouro branco”.
O uso do açúcar, até fins do século XV restrito à
nobreza, tinha se disseminado por toda a Europa e
atingido novas classes a partir do sucesso de sua
cultura na ilha da Madeira, iniciada na primeira metade
do Quatrocentos. Mas Funchal, capital da ilha, era um
porto de relativamente fácil acesso, no qual muitos
comerciantes de todas as nacionalidades negociavam a
doce mercadoria, e se tornara de difícil controle para a
Coroa. Isso, em muitas oportunidades, levava a um
descontrole no abastecimento que afetava as cotações do
produto. Além disso, o terreno do arquipélago era
pedregoso e as propriedades tinham tamanho limitado, o
que dificultava a cultura mais extensiva da cana.
Convinha buscar novas terras que se prestassem a
produzir o açúcar que era usado ao natural ou em
conservas que encantavam, sobretudo, os flamengos.
A busca por novas áreas para desenvolver a cultura da
cana-de--açúcar foi um dos fatores que levaram a Coroa
portuguesa a procurar um modelo de povoamento para o
Brasil, que tinha, ao longo de toda a sua costa, as
condições favoráveis para que a gramínea vicejasse:
altas temperaturas, solos ricos e fartura de água.
Regiões como São Vicente, Pernambuco e o Recôncavo
Baiano são muito rapidamente ocupadas por engenhos e
vastas plantações.
A expedição de Martim Afonso que aportou em 1531 no
Brasil, como se sabe, trouxe mudas de cana e
especialistas agrícolas. E, muito provavelmente, trouxe
um dos primeiros alambiques do Novo Mundo, talvez um que
já tivesse produzido aguardente de uva, mel ou cana nas
Canárias, ponto de passagem da esquadra do fidalgo e
provável origem das primeiras mu das de cana dessa
primeira iniciativa organizada de produção canavieira em
larga escala no Brasil.
Numa das três regiões citadas acima – mais provavelmente
São Vicente , se levarmos em conta o caminho feito pela
cachaça nas décadas seguintes –, o processo da
destilação que os ibéricos aprenderam com os árabes
produziu, pela primeira vez, a aguardente de cana no
Brasil.
Naquele momento, nada diferenciava aquela aguardente de
outros destilados de cana que surgiam em outros pontos
da América – como o rum, na Nova Inglaterra e no Caribe
– ou das ilhas do Atlântico – o grogue de Cabo Verde. A
cachaça só ganharia seu nome definitivo – de origem
espanhola – e sua especificidade alguns séculos depois.
Claro que essa origem foi mitifi cada em lendas como a do
melado esquecido no fogo e depois escondido do feitor,
que fermentou e, após evaporar, condensou-se no teto do
engenho e gotejou, dando origem à denominação “pinga”.
Pior ainda a potoca que afirma ser o termo “aguardente”
advindo de uma suposta ardência do líquido em contato
com as feridas nas costas do escravo vítima do látego,
quando se sabe que a expressão latina aqua vitae era
de largo uso em todo o mundo latino ainda no Império
Romano.
De todo modo, a cachaça firmou-se muito rapidamente no
gosto popular dos “negros da terra” (índios), africanos
e portugueses de estirpe popular ou degredados que
formaram os primeiros núcleos de povoamento nas terras
brasileiras. Era barata, sendo feita com uma pequena
parcela do caldo ou da rapadura derivados da cana farta
nas grandes plantações, e de relativamente fácil
produção. Enquanto os fidalgos se entregavam ao vinho e à
bagaceira vindos do Reino, o populacho das três raças se
consolava com a cachaça enquanto o Brasil ia se
formando.

Pequena moenda
portátil,
Jean Baptiste Debret, in Viagem Pitoresca e História ao
Brasil, século XIX
PARATY Para dar conta desse consumo, as dezenas
de engenhos em volta da baía de Todos os Santos e os de
Pernambuco produziam a sua jeribita. Mas uma cidade se
tornava sinônimo de cachaça: Paraty. Ali, os vicentinos
que, segundo a hipótese mais provável, começaram a
produção de cachaça em meados do século XVI nas terras
do chamado Engenho dos Erasmos, fincaram no fim desse
mesmo século ou no início do seguinte os primeiros
alambiques que fi zeram a glória da bebida, aperfeiçoando
suas técni-cas de produção. O porto do qual os navios
partiam para a África e para o Reino e tropeiros e
colonizadores se internavam na direção das Minas
chegaria a ter, no século XVIII, em torno de cem
fábricas de cachaça em funcionamento.
Em Paraty, negros chegavam da África e eram
desembarcados e levados para a engorda no saco de
Mamanguá, enquanto os navios eram carregados de cachaça
– o pagamento preferido dos comerciantes da Costa da
Mina e de Angola. Naquele momento, os africanos haviam
se tornado também grandes consumidores de cachaça – o
único destilado que conheciam –, o que muito preocupava
a Coroa portuguesa.
Acossada pela concorrência da cachaça no Brasil e na
África, e com o apoio de senhores de engenho que veem a
cana dos pequenos produtores desviada da função de
matéria-prima do açúcar para a valorizada cachaça,
Lisboa baixa em 13 de setembro de 1649, a proibição do
fabrico do “vinho de mel” em todo o Brasil (em 1635, uma
primeira lei nesse sentido não havia “pegado” e fora
esquecida).
O protesto dos fazendeiros, sobretudo os da província do
Rio de Janeiro, que abasteciam Angola de cachaça até por
não conseguir competir com o açúcar de melhor qualidade
de Pernambuco, é for-te e a Coroa responde retirando a
proibição, aumentando taxações, tornando a proibir e
estabelecendo diversos obstáculos e regulações. Em 1659,
o comércio de aguarden-te sob qualquer forma, é vetado,
gerando protestos que culminam com a chamada Revolta da
Cachaça, em 1660, quando, liderados por fazendeiros da
região de São Gonçalo, o povo do Rio de Janeiro depõe o
governador, então em viagem a São Paulo, obrigando a
Câmara a dar posse a outro fidalgo.
A rebelião é sufocada com certa facilidade, depois que
os paulistas negam seu apoio aos revoltosos, e seu
líder, o produtor de cachaça Jerônimo Barbalho, é
enforcado. Mas a Coroa não apoia a decisão do governador
Salvador Correa de Sá e Benevides. Ele acabaria sendo
chamado de volta a Lisboa e processado, enquanto a
produção da cachaça, para deleite de fazendeiros,
comerciantes e do povo em geral, era liberada sem
restrições, “a fim de evitar novos problemas”.
A primeira rebelião popular da nascente nacionalidade
brasileira contra o domínio português de que se tem
notícia prefaciou o papel de símbolo da nacionalidade
com que a cachaça seria brindada ao longo dos séculos
seguintes. Com a descoberta do ouro, a branquinha
subiria a serra do Mar e encontraria seu território definitivo:
as Minas Gerais.
MINAS GERAIS A cachaça chegou às Minas com os
tropeiros e bandeirantes, através do Caminho Velho, que
já existia no fi m do século XVII e ligava Paraty a
Guaratinguetá e, daí, à região aurífera da Vila Rica.
Também subiu o rio São Francisco, com os baianos que se
internaram no sertão rosiano. Em 1715, o governador da
província, Brás Baltazar da Silveira, já dá início à
perseguição ao líquido brasileiro, proibindo a
construção de novos alambiques, sob a alegação de que a
bebida “inquieta os negros” e causa “dano irreparável ao
Real Ser-viço e à Fazenda” – pura reserva de mercado
para os vinhos e bagaceiras do Reino. A lei é tão inócua
quanto as anteriores e outras que se sucederão ao longo
do século para deter o avanço dos alambiques, que vão se
tornando parte do equipamento básico das fazendas
mineiras.
Enquanto as minas escasseavam em fins do século XVIII, os
alambiques se multiplicavam para desgosto da Coroa.
Durante a Inconfidência, ela será usada para brindes, por
exemplo, no banquete oferecido pelo Padre Toledo em
outubro de 1788 após o batizado dos filhos de Alvarenga
Peixoto e Bárbara Helio-dora – considerada a primeira
reunião inconfidente na Comarca do Rio das Mortes, hoje
Tiradentes.
A própria família de Tiradentes produzia – e produz –
cachaça, no engenho Boa Vista, na atual cidade de Xavier
Chaves. O padre Domingos da Silva Xavier, irmão do
alferes, cuidava do alambique. Já no território da
lenda, o último pedido do futuro mártir da nacionalidade
basileira teria sido: “Molhem minha goela com cachaça da
terra”.
A ligação lendária entre o alferes e a bebida faz todo o
sentido dentro da construção dos símbolos da
nacionalidade brasileira do século XIX, a reboque da
Independência. Nesse período, a cachaça atinge seu ponto
mais elevado como parte da vida nacional. Em 1863, são
150 os alambiques em funcionamento apenas em Paraty,
fornecendo, inclusive, para o Palácio Imperial, onde a
preferência do conde d’Eu – que se casaria com a
princesa Isabel no ano seguinte – seria glosada, mais
tarde, por Oswald de Andrade: “No baile da Corte/ Foi o
Conde d’Eu quem disse/ Pra Dona Benvinda/ Que farinha de
Surui, Pinga de Paraty e fumo de Baependi/ É comê, bebê,
pitá e caí.”
Recebida em palácio e cantada pelos nobres, tal era o
prestígio da cachaça naquele século que foi admitida até
nas cerimônias religiosas, como atesta o Baile da
Aguardente, recolhido por Melo Morais Filho e
mencionado por Câmara Cascudo no seu Prelúdio da
cachaça. Segundo o folclorista, a penetração na
religiosidade – a mais profunda das representações de um
povo – comprova o elevado status que a cachaça atingiu
naquele momento.
REJEIÇÃO Mas a segunda metade daquele século
testemunharia a ascensão da burguesia e, com ela, aquilo
que Nelson Werneck Sodré denominou a “ideologia do
colonialismo” – a afinidade entre a burguesia nascente
brasileira e a europeia, com a subordinação material e
cultural da primeira pela segunda. O mais divulgado dos
“preconceitos justificatórios” difundidos por essa
ideologia, vulgarizado no período, é o da superioridade
racial das raças europeias, particularmente nórdicas,
sobre os de outras raças, especialmente negros e
indígenas.
A prosódia brasileira é rejeitada – nos teatros,
adota-se o modo de falar lisboeta –, e os burgueses
brasileiros são os mais numerosos assinantes daRevue
des Deux Mondes fora da França. E ganha espaço a
ideia de um Brasil “civilizado” (o litorâneo, de
pretensões cosmopolitas) em oposição ao atrasado – o
interiorano, território do índio, do cabra e da cachaça.
Estreitamente ligada à história da escravidão, a cachaça
é rejeitada como bebida de negro, de caboclo (os índios
desgarrados que iam para a cidade em condição de
miséria), de cabra (o trabalhador do canavial
nordestino). Mas, como diz Câmara Cascudo, ela
asseguraria sua sobrevivência, “ficando com o povo”.
E é nessa condição que
ela aparece em mais um episódio da história brasileira.
Numa noite de novembro de 1910, o marinheiro Marcelino
Rodrigues tenta embarcar no navio Minas Gerais com duas
garrafas da branquinha. Um ato de indisciplina, por
certo, repreendido por um cabo enérgico, que apreende as
garrafas. Marcelino reage a navalha, mas é preso e
recebe, como punição, 250 chibatadas – dez vezes mais do
que era o disposto pelo regulamento.
O episódio precipitou a
longamente planejada Revolta da Chibata, imortalizada na
canção de João Bosco e Aldir Blanc Mestre-sala dos
mares. A letra genial de Aldir homenageia o líder do
movimento que pretendia acabar com os castigos físicos
na Marinha brasileira: João Cândido. Filho de escravos,
o marujo comandou os quatro encouraçados que ameaçaram
bombardear a capital da recém-instituída República caso
suas reivindicações não fossem aceitas. Seis anos antes,
o “almirante negro” tinha recebido também uma punição
por levar cachaça a bordo: suspensão do soldo.
A cachaça era o consolo
para a vida dura daqueles homens para quem a abolição, a
República e a cidadania não haviam chegado de todo. E,
assim ela atravessou o século XX: como a amiga do povo,
cantada pelos poetas populares e rejeitada por aqueles
que viam no que era mais profundamente brasileiro o
sinal do atraso.
VITÓRIA Mas
mesmo esses setores acabam, no fi m do século, por se
sentirem ultrapassados diante da vitória retumbante da
cachaça, sobrevivente às perseguições seculares e
entronizada como símbolo nacional. A bebida se valoriza,
ganha qualidade, aprimora suas técnicas de
envelhecimento, e seu consumo começa a não ser visto
mais como coisa da “ralé”.
No século XXI, o Brasil
e o que seja brasileiro entram na moda e a cachaça vai
junto, ocupando cada vez mais espaços. Agora,
testemunha-se a chegada dos grandes grupos
multinacionais (a Diageo, com a compra da Ypióca, e a
Campari, com a aquisição da Sagatiba) que almejam, junto
com empresários nacionais e o governo brasileiro, agora
de todo convencidos dos valores da bebida, levá-la a
outro patamar, abrindo um novo capítulo nessa história
que se confunde com a da superação e resistência do povo
brasileiro: a de potência mundial.

Engenho, Frans Post.,
Museu do Louvre, Paris
Fonte:
História Viva
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