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10/01/2013
Ao invés de alianças,
pantufas!
Os enlaces
matrimoniais na Idade Média.
Prof. Pablo Michel
Magalhães
Nos
contos de Grimm, Cinderela, ao ouvir as 12 badaladas do
relógio, precisa correr, fugir do baile e dos olhos do
príncipe. O encanto dado pela fada-madrinha acabava à
meia noite, e seu vestido e sua carruagem voltariam a
ser trapos e abóbora novamente. Em
sua fuga desesperada, um de seus sapatos de cristal fica
para trás. Sem parar, ela resolve não resgatar o
calçado, e continua a correr. O príncipe, desolado, pega
a peça da vestimenta da amada e guarda-a, como última
lembrança de alguém inesquecível.
Eis
aí um dos contos mais conhecidos em todo o mundo.
Cinderela, ou Gata Borralheira, corresponde a um
clássico da cultura popular, reproduzido em peças de
teatro, filmes, pinturas, livros. Ao compilar vários
contos populares, por meio da coleta de depoimentos de
camponeses europeus (os Grimm iam até as fazendas e
demais possessões rurais, ouvir as histórias
moralizantes que as mulheres contavam aos filhos), os
irmãos Jacob e Wilhelm imortalizaram as histórias
contadas através da escrita.
Drew Barrymore, no filme Para sempre Cinderela,
como a protagonista.
Interessante é notar que, para além de histórias com uma
moral no fim (dizem que os Grimm "adocicaram" os contos,
excluindo algumas partes mais chocantes. Tratamos disso
no texto
Branca de Neve, Cinema e os Irmãos Grimm: cultura
popular num cinema pop),
os contos compilados traziam consigo uma boa carga dos
costumes medievais, praticados em larga escala no
ambiente rural, comuns mesmo até o século XIX (ver Uma Longa
Idade Média, do historiador Jacques Le Goff).
Tomaremos, como exemplo, um costume bastante recorrente
na França, Inglaterra, Alemanha e Itália, relacionado ao ato de
dar um sapato.
Até a instituição do casamento cristão na Europa
medieval, os povos germânicos já possuíam rituais que
celebravam enlaces matrimoniais. De um modo geral, o
rito era realizado na casa da noiva, e celebrado pelo
patriarca da família (o pai da moça).
Era de bom tom que a noiva entregasse ao futuro esposo
um presente simbólico (uma grinalda de flores, por
exemplo), que representaria seu apreço pela pessoa
desposada. Sob as bênçãos dos familiares, todos
presentes em volta dos noivos, a moça entrega ao rapaz
seu sapato (ou pantufa, calçado muito utilizado no
período medieval), com o pedido (geralmente feito pelo
pai da noiva) de que o esposo cuidasse do bem estar de
sua mulher. Na Inglaterra medieval, este ritual era
conhecido como handfeste, tradição mergulhada na
cultura céltica (que veio a permear boa parte da Europa
Continental, visto que o povo celta migrou por várias
regiões do Velho Mundo).
O Casamento dos Camponeses, de 1567, de Pieter Brueghel,
o Velho
Dar o sapato era, também, conceder a posse a uma pessoa.
Por exemplo, na festa após o casamento, havia um jogo
bastante praticado, onde escondia-se o sapato da noiva,
e os convivas deviam procurá-lo. Para aquele que
encontrasse, era concedido o direito de ser o "esposo
por uma noite" da moça. Até que ponto esse direito ia
(se apenas como algo figurativo, ou concreto) nada
sabemos.
Há ainda outros exemplos sobre o ato de dar o sapato. Em
uma crônica medieval, cujo estilo pode ser enquadrado como
um Exemplum (conto moralizante medieval,
envolvendo eventos da vida cotidiana ou sobrenaturais
atribuídos a santos), utilizada pelo historiador francês
Jean-Claude Shmitt em seu livro
O
corpo das imagens: Ensaios sobre a cultura visual na
Idade Média, há a história de um jogral que vai a
uma igreja e toca alguns acordes do seu alaúde a uma
imagem do Cristo (trata-se do Volto Santo di Lucca, onde
Jesus crucificado está vestido e coroado como rei). Como forma de gratidão, a
imagem joga-lhe sua pantufa, simbolizando a escolha do
jogral como preferido pela imagem.
Iluminura do século XVI, de Hans Burgkmair, mostrando a
cena da lenda.
No caso do conto da Cinderela, o sapato deixado para
trás pela moça tem um significado mais profundo do que
apenas o de esquecimento durante a fuga desabalada. A
pantufa de cristal (Cinderela dificilmente teria usado
sapatos de salto alto, algo estranho no ambiente rural
onde vivia, na fábula) representa, simbolicamente, a
preferência em seu coração pelo príncipe.
Com a cristianização das práticas matrimoniais, muito
dos costumes tribais, praticados em larga escala no
ambiente rural pelos camponeses, foram expurgados, em
detrimento do rito oficial católico. No caso das
pantufas, entre os nobres, a Igreja introduziu o costume
da troca de anéis (tradição milenar hindu, também
praticada pelos romanos, porém apenas a mulher
utilizava a aliança, como símbolo de "pertencimento" a um homem; a
partir do século IX, o Cristianismo passou a exigir que
homem e mulher as utilizassem, como símbolo mútuo de
amor).
(Texto do Prof. Pablo
Michel Magalhães, da redação d'O Historiante). |
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