A miséria que a Ditadura não conseguiria esconder

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O IBGE enviou 1200 pesquisadores para investigar o consumo familiar em 1974 e 1975 (IBGE/reprodução da BBC)

‘Escondidos’ nos arquivos do IBGE, registros do retrato da miséria na ditadura incluíam famílias famintas e mães sem dentes.

Da Redação
Com informações da BBC Brasil

Entre 1974 e 1975, o Estudo Nacional de Despesa Familiar (Endef) examinou 55 mil residências em todas as regiões do país, tanto em áreas rurais quanto urbanas, por um período de sete dias. Durante esse tempo, os pesquisadores monitoravam as refeições dos moradores, incluindo a pesagem dos alimentos e dos restos.

A campanha “Abra a porta para o IBGE” foi lançada para encorajar as famílias a compartilharem suas casas e hábitos com os pesquisadores, com a atriz Regina Duarte como rosto da campanha.

Uma publicação de 1978 destacou os “múltiplos objetivos para atender às necessidades de planejamento do governo” da ampla pesquisa. O IBGE necessitava conhecer os padrões de consumo das famílias para desenvolver índices de preço (medidas de inflação), indicadores sociais e aperfeiçoar o cálculo do Produto Interno Bruto (PIB).

Regina Duarte, a ‘namoradinha do Brasil’, foi contratada como garota propaganda do Endef (IBGE/ reprodução da BBC)

Além disso, a pesquisa pretendia criar um mapa das deficiências alimentares da população. A importância do estudo foi ressaltada em um editorial do Jornal do Brasil em agosto de 1974, quando o trabalho de campo começou.

O IBGE introduziu um espaço para anotações livres nos questionários, sugerindo que os pesquisadores registrassem suas impressões pessoais sobre a situação dos entrevistados e o andamento das entrevistas.

O resultado foi um registro detalhado da pobreza e da fome que afligiam grande parte da população, apesar do rápido crescimento econômico dos anos anteriores. Essa parte do estudo foi publicada, mas sua distribuição foi limitada, levantando suspeitas de censura pela Ditadura Militar, algo que permanece em debate até hoje.

Um relato da pesquisa em Uberlândia (MG) mencionava que, entre os domicílios estudados, 70% estavam na faixa de baixo padrão de vida, 20% em condições extremas e 10% com o necessário para sobreviver. Nesta última categoria, estavam pessoas com empregos fixos, mas ainda carentes de muitas coisas.

Nas faixas mais baixas, a base da alimentação era farinha de mandioca grossa feita em casa. O vestuário era geralmente doado, e em casos extremos, as pessoas se vestiam com trapos sujos e malcheirosos.

Uma pesquisadora em Boa Vista (RR) descreveu sérios problemas de saúde entre a população local: “Devido à má alimentação, são seres totalmente predispostos aos males do meio ambiente. Desde que uma dessas famílias tinha vindo do interior, ninguém pergunta se não teve ‘malária’ ou até mesmo ‘hepatite’ porque são doenças comuns no interior.”

“Mediante as dificuldades na compra dos remédios, são pessoas que ficam maltratadas para o resto da vida. As mulheres não são privilegiadas. Depois do primeiro filho, perdem logo os dentes (falta de cálcio) e sofrem as consequências de um parto mal feito durante muito tempo”, segue o relato.

“Em um domicílio, o homem da casa está enfraquecido devido à falta de alimentação e a senhora dele está débil mental em consequência de um parto mal feito. As crianças são raquíticas, de cor pálida e frequentemente com tosse”, descreveu ainda a pesquisadora.

No interior do Paraná, havia relatos da equipe do IBGE sobre a dura realidade das famílias de boias-frias, trabalhadores diários em fazendas locais.

“A fome tomava conta dos pequenos corpos humanos que habitavam a bela fazenda de café. (…) Soubemos de uma família que ia para o trabalho sem a pequena marmita de almoço, substituíam-no por ‘coco guavirova’ ou até chegavam ao extremo de comer folha seca de café.”

Miséria e proibição

A BBC News Brasil conversou com Maurício Vasconcellos, servidor aposentado do IBGE que trabalhou por muitos anos em diferentes fases do Endef e, posteriormente, liderou alguns setores do instituto, como o Departamento de Censo Demográfico.

Exemplares da pesquisa foram marcados com o aviso de ‘distribuição restrita’nos anos 70. O carimbo de ‘confidencial’ foi acrescentado após a Ditadura, segundo o servidor aposentado do IBGE Maurício Vasconcellos (IBGE/ reprodução da BBC)

Vasconcellos acompanhou parte do trabalho de campo e chegou a testemunhar a morte de um bebê durante o processo de entrevista, devido à extrema vulnerabilidade da família. Ele evitou dar detalhes para não se emocionar.

Ele lembrou que o estudo era extremamente impactante e poderia causar lágrimas se lido por alguém.

Vasconcellos estava se referindo a uma publicação intitulada “Estudo das informações não estruturadas do Endef e sua integração com os dados quantificados”, produzida por Parga Nina a partir dos relatos de campo.

Por conta da complexidade desse material, o diretor do Endef solicitou relatórios semestrais sobre as pesquisas de campo e sistematizou o material nessa publicação, categorizando os relatos em tópicos como “penúria alimentar”, “condições de saúde e higiene”, “emprego-desemprego” e “vida familiar”.

A introdução do trabalho ressaltava a importância de capturar o que as equipes de campo observaram, sentiram e vivenciaram ao longo daquele ano de trabalho, afirmando que seria um erro não fazer essa tentativa, pois informações valiosas poderiam se perder.

Outro trecho do trabalho destacava que não fazia sentido tentar entender a realidade socioeconômica por meio de pesquisas, em qualquer campo, sem também buscar compreender a dimensão humana do que estava sendo investigado, por meio de convivência, empatia e contato direto.

Apesar da importância atribuída a esse trabalho, ele não foi divulgado ao público. Apenas 250 cópias foram impressas, algumas enviadas discretamente a órgãos públicos e bibliotecas, como o Ministério da Saúde e algumas universidades.

Alguns volumes que ainda estão nos arquivos do IBGE possuem a mensagem “Distribuição restrita” escrita na capa em letra cursiva, atribuída a Parga Nina.

Há também volumes com o carimbo de “confidencial”, que, segundo Maurício Vasconcellos, foram adicionados por ele depois, já após à ditadura, quando exemplares que estavam com a família de Parga Nina retornaram ao IBGE, após a morte dele.

A Ditadura e os dados do IBGE

De acordo com Leandro Malavota, historiador da Equipe Memória IBGE, não há evidências históricas que expliquem com certeza por que parte do estudo teve uma circulação limitada. Ele acredita que pode ter havido uma forma de autocensura relacionada ao contexto da ditadura.

Malavota afirma que o Endef mostrou uma realidade oposta ao “milagre econômico”, revelando um Brasil que a ditadura não queria expor. Embora ele não tenha encontrado qualquer determinação formal que impedisse a divulgação dessas informações, ele sugere que os próprios participantes da pesquisa podem ter restringido a divulgação para evitar que informações sensíveis chegassem ao público.

Malavota destaca que, desde sua criação nos anos 1930, durante o governo de Getúlio Vargas, até a ditadura militar, o IBGE era visto como um órgão que atendia aos interesses de planejamento do Estado. Somente após a redemocratização o órgão passou a ser reconhecido como uma instituição voltada para a sociedade, com maior transparência.

Apesar disso, ele observa que as pesquisas eram normalmente divulgadas, como ocorreu com a parte estatística do Endef.

No entanto, essa pesquisa não gerou grande repercussão na mídia. Isso porque o IBGE divulgou dados detalhados sobre a quantidade de calorias e tipos de nutrientes consumidos pela população em diferentes regiões, mas não produziu imediatamente um índice geral, como o índice de desnutrição da população. Maurício Vasconcellos, em sua tese de doutorado, calculou posteriormente, com base nos dados do Endef, que pelo menos 22% do universo pesquisado estava subnutrido.

Uma busca da BBC News Brasil nos arquivos dos jornais O Globo e Jornal do Brasil encontrou registros breves sobre os resultados do Endef.

Por exemplo, em 8 de março de 1977, o jornal O Globo noticiou a divulgação dos dados preliminares do Rio de Janeiro e da região Sul, com a presença de Isaac Kerstenetzky.

O jornal informou que, no Rio de Janeiro, os dados da pesquisa indicaram que a população ingeria, em média, uma quantidade adequada de calorias, embora a ingestão de cálcio fosse menor do que a necessária, enquanto as proteínas, ferro e vitaminas eram consumidos em níveis superiores ao necessário.

A reportagem acrescentou que não era possível comparar a dieta alimentar da população da Baixada Fluminense com a de áreas habitadas por pessoas de renda mais elevada.

O presidente do IBGE explicou que o Endef não foi projetado para desagregar dados a esse nível, pois, segundo ele, isso não seria justificável. Ele enfatizou que o mais importante era relacionar a dieta alimentar com outros dados, como profissão e situação econômica dos entrevistados.

A baixa repercussão do Endef junto à opinião pública contrasta com os resultados do Censo de 1970, que provocaram intenso debate nacional ao revelar altos níveis de desigualdade de renda no país.

Apesar disso, a pesquisa foi usada para desenvolver novos índices de preço e indicadores sociais, além de contribuir para um cálculo mais preciso do PIB, uma vez que o consumo das famílias é um fator importante na economia brasileira.