Joyce Oliveira Pereira Mestre em História - UEMA
Como citar este artigo:
PEREIRA, Joyce Oliveira. A dor dos outros (Artigo). IN: O Historiante. Publicado em 27 de Janeiro de 2022. Disponível em: https://ohistoriante.com.br/2022/02/a-dor-dos-outros/. ISSN: 2317-9929.
“Papai, então me explica para que serve a História?”. A pergunta clássica de Marc Bloch todos os dias é feita aos professores de História. Eu costumo responder aos meus alunos, que é para compreender como chegamos ao presente. Bem, o que isso tem a ver com a dor dos ‘outros’? Tudo.
Desde ontem a repercussão da morte de Moïse Kabamgabe, trabalhador congolês, tomou conta das redes sociais. O motivo: ele foi amarrado e morto a pauladas por cobrar salários atrasados. Não como não lembrar de inúmeros casos iguais a esse, como, o que ocorreu no meu estado, o Maranhão ano final do ano passado: um rapaz negro que estava no seu carro foi espancado por um casal e, só não morreu por interferência de terceiros. Ele foi associado diretamente à um ladrão. O que isso tem em comum? A violência sobre os corpos negros, a invisibilidade desse ‘outro’ e a permissividade que historicamente o Estado brasileiro mantém através do racismo estrutural.
Em um país em que 54% da população é negra, como episódios como esse ou o racismo recreativo que aparece no BBB são muitas vezes desconsiderados, duvidados, passíveis de ‘notas de esclarecimento’? Além de todos os fatos já citados, os livros de história e a representação de imagens acerca da escravidão constrói um lugar de memória que naturaliza a violência sobre os corpos negros.
As imagens de Debret, Rugendas e as fotografias (a partir do XIX) são ótimas fontes históricas, entretanto fabricam o lugar desse ‘outro’ como o lugar do silêncio, daquele que muitas vezes não olha diretamente para nós, ou seja, não nos interpela, não nos incomoda, não nos toca, nos revolta, nos acusa (o olhar para o espectador é mais comum nas fotografias).
Então, ao longo do processo de escolarização, essas imagens são repetidas e, associadas ao racismo estrutural, reforçam cada vez mais a necropolítica (política da morte, da destruição de corpos) e o epistemicídio (destruição de concepções filosóficas, políticas, econômicas, culturais diversas em prol do colonialismo) que impede que a dor do ‘outro’ seja sentida, chorada. Os corpos negros, se tornam números, casos isolados e, muitas pessoas acham que não tem nada a ver com isso.
Por fim, as imagens devem sair dos livros de História? NÃO! NUNCA! Como já disse, elas são ótimas fontes históricas que ajudam os docentes a refletir sobre o papel dos africanos e afro-brasileiros: A CONTRIBUIÇÃO É ECONÔMICA! SIM, É! OLHE NOVAMENTE PARA OS LIVROS? O QUE ESSE SUJEITOS ESTÃO FAZENDO? TRABALHANDO! SEJA NOS ENGENHOS, NAS MINAS, NAS CASAS, NOS CAFEZAIS, NAS RUAS. TRABALHANDO! E talvez seja por isso, que o lugar deles foi produzido e reproduzido como silêncio. Quando problematizamos esse trabalho e a violência que estão nos livros, doí. E doí mais quando lembramos da violência sistemática dos racismos ao longo dos séculos.
Para que serve a História? Para discutir quando nós vamos começar a sentir/cobrar a dor dos ‘outros’. Isso é dever de memória, ou seja, aquilo que não deve ser esquecido.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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