Massacre do Paralelo 11: um capítulo na longa história do genocídio indígena no Brasil

Distribuição de brindes aos índios kuikuro pela equipe do Serviço de Proteção ao Índio, em imagem do acervo do Museu do Índio que não consta do relatório (Foto: Divulgação/Museu do Índio)

Da redação
Com informações de:
- G1
- Instituto Socioambiental (ISA)
- Observarório da Imprensa, artigo de Ulisses Capozzoli

No Mato Grosso, em 1963, latifundiários e funcionários do Serviço de Proteção ao Indígena massacraram o povo originário Cinta-Larga.

O Massacre do Paralelo 11, como ficou conhecido um dos mais horrendos episódios de que se tem notícia até hoje no Brasil, incluiu do roubo ao estupro, passando por grilagem, assassinato, suborno, tortura e outras agressões que chocaram o então ministro do Interior, general Albuquerque Lima, que mandou demitir um dos principais envolvidos no incidente, o então chefe do Serviço de Proteção ao Indígena, major Luiz Vinhas Neves, responsável pela chacina dos indígenas.

Este sórdido evento ocorreu em novembro de 1963 no Mato Grosso, quando homens contratados por uma empresa de extração de borracha mataram 3,5 mil membros do povo indígena cinta-larga da Amazônia e destruíram sua aldeia. Apenas dois aldeões sobreviveram ao massacre. Este assassinato em massa foi parte do genocídio maior e contínuo dos povos nativos do Brasil ao longo de décadas.

Um massacre cometido com aval do SPI

O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) foi criado em 1910 e operou em diferentes formatos até 1967, quando foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai), que vigora até os dias de hoje.

Sua fundação se deu em um período altamente crítico para os povos indígenas. Diversas frentes de expansão para o interior, ao longo de todo o país, faziam a guerra contra os nativos. Em meados de 1907, as disputas no interior chegaram às capitais e ao cenário internacional em tom de acirrada polêmica.

O então diretor do Museu Paulista, von Ihering, defendia o extermínio dos índios que resistissem ao avanço da civilização, promovendo grande revolta em diversos setores da sociedade civil. Em 1908, o Brasil fora publicamente acusado de massacre aos índios no XVI Congresso dos Americanistas ocorrido em Viena

É possível dizer que o SPI foi formado em continuidade com premissas coloniais. Seu modo de atuação, formado a partir de doutrinas positivistas, incorporou técnicas missionárias tais como: distribuir presentes, vestir os índios e ensinar-lhes a tocar instrumentos musicais ocidentais.

A formulação destas concepções está intimamente ligada à atuação do marechal Cândido Rondon (1865-1958), que foi o primeiro presidente do órgão e exerceu grande influência na condução de suas políticas ao longo de praticamente toda sua história.

Rondon, ele próprio descendente dos terenas do Mato Grosso, posteriormente repeliu sua formação positivista ao se dar conta de que integrar o índio à sociedade nacional equivalia pura e simplesmente a um assassinato cultural.

Contudo, durante o governo militar, os generais se esforçaram para materializar esta que lhes pareceu uma solução ideal: exterminar os indígenas, fisicamente ou culturalmente.

A borracha e os indígenas

A região onde o caso se desenrolou estava em meio a uma complicada disputa comercial. No final do século XIX, houve um boom da borracha na Amazônia. Isso foi um desastre para as tribos indígenas da região, pois eram usadas como mão-de-obra escrava nas plantações de seringueiras. 

Há estimativas, segundo a organização internacional Survival, de que a população indígena diminuiu em 90% conforme morriam de doenças e violência. Muitos dos sobreviventes fugiram para partes mais remotas da selva, onde seus descendentes ainda vivem hoje.

A partir da década de 1920, contudo, o assédio dos empresários da borracha, sofrido pelo grupo Cinta Larga, aumentando substancialmente até a década de 1960.

A situação piorou quando a rodovia Cuiabá-Porto Velho (BR-364) foi inaugurada. Os Cinta Larga enfrentaram ameaças não só de latifundiários, mas também de garimpeiros que buscavam suas terras por ouro e diamantes.

O Massacre do Paralelo 11

Homens se preparando para cortar ao meio uma mulher da etnia cintas-largas, em um território indígena, na região entre o Mato Grosso e Rondônia, em 1963.
Homens se preparando para cortar ao meio uma mulher da etnia cintas-largas, em um território indígena, na região entre o Mato Grosso e Rondônia, em 1963.

Podemos observar os ataques, sobretudo, em dois momentos.

Iniciamente os latifundiários, com ajuda de funcionários do SPI, presentearam os índios com alimentos misturados a arsênico, veneno letal. Em algumas aldeias aviões atiraram brinquedos contaminados com vírus da gripe, sarampo e varíola.

Em um segundo momento, foi a empresa Arruda, Junqueira & Co, exploradora dos seringais, quem agiu, com a participação do chefe do SNI, major Luiz Vinhas Neves. O massacre também foi planejado pelo chefe da empresa, Antonio Mascarenhas Junqueira. Ele queria remover os Cinta Larga da área que ele planejava explorar.

Junqueira contratou um avião, que lançou dinamite na aldeia. Depois disso, homens armados atacaram a aldeia a pé com metralhadoras para matar os sobreviventes. Em um incidente, eles pegaram um bebê de uma mulher amamentando e atiraram na cabeça do bebê. Eles, então, penduraram a mulher de cabeça para baixo e a cortaram ao meio. Trinta aldeões foram mortos no ataque. Apenas dois sobreviveram.

O atentado, no entanto, chamou a atenção quando um dos agressores, Atayde Pereira dos Santos, denunciou e os responsáveis da Inspetoria do SPI em Cuiabá , aparentemente depois de não receber a quantia prometida

A seguir, é possível acompanhar o depoimento de Atayde. O relato resultou do levantamento feito pela comissão organizada para investigar o caso:

– Minha tarefa era só matar o chefe dos cintas-largas. O índio estava isolado e era o único que não trabalhava, encostado a uma pedra, parecendo fiscalizar os outros. Aí Chico Luiz me disse: ‘Segura o capitão deles que eu acabo com o resto’. O Chico Luiz me escalou porque confiava na minha pontaria. O ‘Boliviano’ [membro do grupo de ataque] tinha uma winchester, mas eu nunca errei com meu velho mosquetão – relatou o seringueiro.

Naquele dia, os atacantes dos cintas-largas estavam na margem oposta do Aripuanã, afluente do Madeira que atravessa a reserva indígena. Era um grupo de seis homens capazes de se deslocar na floresta com a habilidade de um índio. Chico Luiz era o chefe do grupo, que estava a serviço de Antonio Mascarenhas de Junqueira, seringalista respeitado em Mato Grosso, conhecido pela prática de assassinar índios. O grupo havia deixado o seringal, na confluência dos rios Juinamirin e Juruena, subindo por este último até Águas Bravas, onde o Juruena revolto não permite a navegação. Penetraram na selva e a partir daí receberam apoio aéreo de um Cessna que lançava, periodicamente, alimentos e munição.

O grupo atingiu a maloca dos cintas-largas à noite, com armas engatilhadas e sem fazer fogo capaz de denunciar sua presença. Nem um cigarro foi fumado durante toda a espera, quando se falou pouco e a sussurros.

Ao amanhecer, com os cintas-largas deixando seus abrigos, os homens estavam prontos do outro lado do rio:

– Eu quase dormi na pontaria, mas quando apertei o gatilho o índio caiu – relatou Ataíde. Mas ele mesmo ficaria horrorizado com as cenas que se seguiram. Chico Luiz portava uma metralhadora e os demais winchester-44 (‘papo-amarelo’), arma de alto poder de fogo, além de pistolas 38. Os índios não tinham como se defender sob a fuzilaria deflagrada pelo disparo de Ataíde, mas o grupo só atravessou o rio quando se deu conta de que todos estavam mortos.

A surpresa, que desconcertou Ataíde e os outros, foi a presença de uma índia levando pela mão uma criança com idade estimada posteriormente em 5 anos. Ela nem correu. Estava sem forças. Apenas chorava, o que, no relato de Ataíde, irritou Chico Luiz:

– É preciso matar todas essas pragas – berrou ele para o resto do grupo.

Ataíde disse ter tentado contemporizar:

– Não faz mais judiação, Chico. Os cintas-largas vão querer se vingar. E os padres também não vão gostar disso – argumentou, referindo-se a missionários da ordem Consolata, que trabalhavam com os índios.

– A gente pode ficar com a mulher. Ela é nova e bonita e se você não quiser a gente leva de presente pro Amorim – acrescentou Ataíde, referindo-se ao chefe do grupo que não estava presente, mas gostava de violentar índias.

– Quem quiser mulher que venha buscar mulher no mato – berrou de volta Chico Luiz.
Então, o pistoleiro agarrou a mulher, prendeu-a com uma corda numa árvore, de cabeça para baixo e, com um único golpe de facão, quase abriu seu corpo ao meio. A criança já estava morta, com um tiro na cabeça. Em poucos minutos a habilidade macabra do pistoleiro esquartejou o corpo da mulher enquanto os outros ateavam fogo à maloca minutos antes tranqüila e cheia de vida.
Ataíde relatou à comissão que pensou em alvejar Chico Luiz pelas costas, mas se acovardou e permaneceu quieto:

– Todos nós pensamos que ele havia ficado louco, mas ele continuou dando as ordens e mandou que atirássemos os corpos no rio. O ataque não durou mais que uma hora, rememorou Ataíde, ‘porque o Sol ainda não estava a pino quando partimos’.

Cada um dos assassinos deveria receber um pagamento de 50 mil cruzeiros, mas Junqueira, o patrão, recusou o pagamento sob pretexto de que não queria mais aquele tipo de ação por ser muito caro. A estratégia mais barata seria bombardear as aldeias com dinamite, usando avião. Inconformado com a recusa do fazendeiro, Ataíde resolveu vingar-se e relatar o crime com justificativas:

– A gente mata porque, às vezes, fica até seis meses no mato e acaba virando bicho. Os cintas-largas estão sentados em cima de grandes jazidas de cassiterita, a terra deles dá boa planta e tem muito mogno. Eles escolhem a melhor terra e não querem sair de lá. É preciso usar a força.

O “Relatório Figueiredo”

Conhecido como “Relatório Figueiredo”, um documento foi elaborado no fim da década de 1960, a partir do depoimento dado pelo jagunço Atayde. No calhamaço de quase 7 mil páginas, foram denunciadas irregularidades existentes no Serviço de Proteção ao Índio, revelando atrocidades cometidas contra povos indígenas em vários estados do país.

Após décadas desaparecido, foi encontrado no Rio de Janeiro em 2012, pelo pesquisador Marcelo Zelic no Museu do Índio.

Para elaborá-lo, o então procurador Jader de Figueiredo Correia e sua equipe de técnicos, a pedido do extinto Ministério do Interior, a partir de 1967, percorreram estados como Mato Grosso, Rondônia, Pará, Goiás, além de áreas das regiões Sudeste e Sul.

Contudo, além da denúncia do Massacre do Paralelo 11, o documento apontou que muitos dos postos indígenas do SPI foram adaptados e abrigaram cadeias para índios que, para os administradores locais, mereciam ser punidos.

Como resultado do relatório, 38 funcionários do Serviço de Proteção ao Índio foram demitidos. A organização foi extinta no final de 1967, sendo substituída pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Em 1969, baseado no relatório, o escritor Norman Lewis publicou o artigo “Genocídio” no jornal Sunday Times. O artigo motivou a criação da organização em defesa dos povos indígenas Survival International no mesmo ano.

Assistam vídeo do nosso canal sobre o Massacre do Paralelo 11

Ouçam um episódio especial do podcast sobre o genocídio dos povos indígenas na Ditadura Militar

https://open.spotify.com/episode/7fPBUK13hu26TEjD9XjegU?si=4ktrc-qqR5KAt1nTUyBsLA

Leiam o artigo

“O massacre do paralelo 11 e os direitos fundamentais a partir do direito de memória Indígena e a decolonização do direito brasileiro”, de Alianna Cardoso Vançan e Milena Valle Rodrigues.