Dislexia
Entrevista com a
psicóloga
Prof.ª Ms. Marcela Fulanete
Corrêa
Apresentação
Marcela Fulanete Corrêa é aluna do Programa de Doutorado
em Psicologia do Desenvolvimento Humano da Universidade
Federal de Minas Gerais. Possui mestrado e graduação em
Psicologia pela mesma instituição. Atualmente é
professora assistente do Colegiado de Psicologia da
Universidade Federal do Vale do São Francisco e atua
principalmente nas seguintes áreas: desenvolvimento
inicial da leitura e da escrita, desenvolvimento da
linguagem oral, transtornos do desenvolvimento e da
aprendizagem.
Perguntas
1) O
que é dislexia?
A dislexia do desenvolvimento, ou apenas dislexia, é um
transtorno de origem neurobiológica caracterizado por
uma dificuldade específica e persistente para aprender a
ler. Essa dificuldade é inesperada em relação à idade e
não pode ser explicada por prejuízos na
inteligência, experiências educacionais
inadequadas, lesões cerebrais adquiridas, déficits
sensoriais primários ou dificuldades emocionais ou
motivacionais.
A primeira descrição da dislexia foi publicada em 1896
por W. Pringle Morgan, um médico de Sussex, na
Inglaterra. A publicação descreveu o caso de Percy F. e
ilustra com clareza o que é a dislexia. Segundo Morgan,
“Percy F., ... com 14 anos ... sempre foi um rapaz
inteligente ... de forma alguma inferior aos colegas da
sua idade. A sua dificuldade sempre foi – e continua a
ser – a incapacidade para aprender a ler.” (Shaywitz,
1996, p. 98).
2) Como
podemos observar em nossos alunos se há a possibilidade
de serem disléxicos?
É importante esclarecer que a dislexia não é causada por
problemas de visão ou de orientação visuoespacial. A
dislexia é um transtorno da linguagem. Segundo o modelo
teórico dominante na literatura, a saber, o modelo do
déficit fonológico, a dificuldade de leitura do
disléxico resulta de um déficit no processamento
fonológico da linguagem.
Os psicolinguistas, ou aqueles que estudam a estrutura e
o desenvolvimento da linguagem, propõem que o sistema de
linguagem é composto por uma série de componentes, cada
qual destinado ao processamento de um aspecto específico
da língua. O componente semântico, por exemplo, está
envolvido com o vocabulário ou o significado das
palavras, ao passo que o componente da sintaxe processa
informações sobre a estrutura gramatical da língua. Um
componente importante refere-se ao componente
fonológico. Esse componente é responsável pela
discriminação, produção e combinação das unidades
sonoras básicas da língua. Essas unidades sonoras são
conhecidas como fonemas ou sons da fala. Cada língua usa
um conjunto de sons específico e não existem duas
línguas que tenham precisamente a mesma fonologia.
Segundo o modelo do déficit fonológico, a dislexia
reflete uma deficiência no componente fonológico da
linguagem. Essa deficiência impede que o disléxico
compreenda que a fala pode ser segmentada em sons e que
esses sons correspondem a letras específicas do
alfabeto.
Sendo a dislexia, portanto, um transtorno da linguagem
e, mais especificamente, um transtorno no componente
fonológico da linguagem, uma série de sinais pode
indicar a possibilidade de um aluno ser disléxico. Se os
sinais observados persistirem por vários meses, faz-se
importante os pais procurarem uma avaliação
especializada.
Cito abaixo alguns desses sinais e as fases do
desenvolvimento em que eles podem ser observados.
Na pré-escola
- Palavras mal pronunciadas, com omissões, inversões e
substituições de fonemas auditivamente semelhantes como
/p/ e /b/, /f/ e /v/, /t/ e /d/;
- Dificuldade de memorizar canções;
- Dificuldade de segmentar as palavras em rimas e
sílabas;
- Dificuldade para aprender os nomes e sons das letras.
No primeiro ano do ensino fundamental
- Substituições de fonemas auditivamente semelhantes;
- Dificuldade de segmentar as palavras em sílabas e
fonemas;
- Dificuldade para associar as letras aos seus sons, e
vice-versa. Por exemplo, dificuldade para associar a
letra “be” com o som /b/, e vice-versa;
- Dificuldade de ler palavras inventadas, isto é,
palavras que não existem, mas que respeitam as regras de
formação de palavras na língua. Por exemplo, galvado;
- Recusa ou insistência em adiar as tarefas de leitura e
escrita;
- Melhor desempenho em áreas do conhecimento que
dependem menos da leitura como a matemática,
informática, artes visuais, etc;
- Queixas dos pais em relação às dificuldades de leitura
e escrita;
- Criança com histórico familiar de dificuldades de
leitura.
No segundo ano do ensino fundamental
- Dificuldade para segmentar as palavras em fonemas e de
ler palavras inventadas;
- Pouco progresso na leitura e na escrita, leitura sem
fluência;
- Tendência de ler palavras por adivinhação, apoiando-se
no desenho e no contexto, em vez de utilizar a
estratégia de conversão das letras nos seus sons
correspondentes;
- Dificuldade de recordar informações verbais, como
nomes e números de telefone;
- Melhor desempenho em matemática
- Falta de prazer na leitura;
- Dificuldade de terminar as tarefas dentro do tempo
previsto.
Em jovens e adultos
- História pessoal de dificuldades para aprender a ler e
a escrever;
- Leitura lenta e laboriosa;
- Dificuldade para ler e pronunciar palavras inventadas;
- Dificuldade para recordar números de telefones, nomes
de pessoas e de lugares, etc;
- Vocabulário expressivo restrito.
É importante dizer que, ao contrário do que muitos
imaginam, a escrita espelhada não caracteriza a
dislexia. Esse tipo de escrita é comum em crianças
disléxicas e não disléxicas que se encontram nas fases
iniciais do desenvolvimento da escrita.
3) De
que modo os professores/educadores podem agir para que o
ensino nas aulas e a aprendizagem do aluno disléxico
possam se equivaler?
O artigo 12 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional fixa que os estabelecimentos de ensino,
respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de
ensino, terão a incumbência de prover meios para a
recuperação dos alunos de menor rendimento. Em se
tratando de alunos disléxicos, os professores/educadores
podem adotar os seguintes meios:
1. Acolhimento: a escola deve mostrar que está
do lado do aluno e que pretende ajudá-lo a se
desenvolver da melhor maneira possível.
2. Informação: todos os professores devem
saber quem são os alunos com dislexia. A escola também
tem a obrigação de conhecer melhor esse transtorno da
leitura.
3. Prevenir discriminação: o professor deve
evitar que o aluno disléxico seja discriminado pelos
colegas. É importante incluir o aluno disléxico em todas
as atividades escolares e, se preciso for, passar
informações sobre a dislexia à turma.
4. Leitura em voz alta: evitar que o aluno
disléxico leia em voz alta na sala e, se ele o fizer,
impedir que seja zombado pelos colegas.
5. Ensino explícito: todo conhecimento deve
ser passado de maneira clara e explícita. Os disléxicos
apresentam uma boa percepção e compreensão visual. O
professor deve tirar proveito disso e utilizar, sempre
que possível, diagramas e esquemas.
6. Atenção individualizada: nas tarefas de
leitura e escrita o professor deve acompanhar de perto o
aluno disléxico;
7. Prova oral: o desempenho do disléxico nas
provas é fortemente afetado pela sua dificuldade de
leitura. Uma vez que esses alunos não apresentam
prejuízos na compreensão oral, provas orais são sempre
bem-vindas.
8. Tempo da prova: os disléxicos levam mais
tempo para processar informações. Oferecer a esse aluno
um tempo maior para fazer provas e trabalhos é garantir
que ele possa expressar seu conhecimento da melhor
maneira possível;
9. Buscar outras formas de comunicação: os
disléxicos apresentam uma enorme dificuldade de se
expressar através da escrita. Peça que esses alunos
apresentem trabalhos utilizando recursos como a colagem,
fotografia, maquete, música, dança, etc.;
10. Fornecer resumos e anotações sobre a aula:
a tarefa de fazer anotações durante a aula é cansativa
para qualquer aluno, especialmente para os disléxicos.
Então, sempre que possível, forneça alguma informação
por escrito para esse aluno.
4) Dentro
de um contexto nacional, podemos dizer que nosso ensino
público/particular está preparado para englobar crianças
com dislexia, provendo estas de uma aprendizagem de
qualidade?
Infelizmente o ensino público/particular brasileiro não
está preparado para integrar o aluno disléxico. A falta
de conhecimentos científicos dos profissionais da área
sobre a dislexia, suas formas de avaliação e intervenção
comprometem a adaptação da escola às necessidades do
aluno e, consequentemente, prejudicam o desenvolvimento
do disléxico.
5) A
relação família/escola pode ser fundamental para que o
aluno consiga aprender significativamente? De que forma?
A relação família/escola influencia significativamente o
desenvolvimento da criança e do adolescente, seja ele
disléxico ou não. Sem o comprometimento dessas duas
instituições, dificilmente o desempenho acadêmico do
disléxico alcançará bons resultados. Segundo alguns
estudos (Morais, 2013), os alunos disléxicos cujos pais
estão envolvidos com as atividades escolares sentem-se
mais confiantes quanto ao domínio de assuntos acadêmicos
e tendem a se sair melhor na escola. Do mesmo modo, pais
que recebem mais informações dos professores sobre seus
filhos tendem a acompanhar de perto o progresso dos
estudantes e a seguir as instruções dos professores
sobre como encorajá-los e ajudá-los em casa. É
essencial, portanto, que a escola esteja aberta ao
diálogo com os pais e busque sempre informá-los a
respeito do desempenho dos seus filhos através de
diários e reuniões. É importante ainda que a escola
converse com os pais sobre as dificuldades dos
disléxicos, orientando-os sobre a melhor maneira de
fazer as lições de casa. Como dito anteriormente, a
compreensão oral dos disléxicos está preservada. Os pais
podem, por exemplo, ler os enunciados das lições de casa
e auxiliar o disléxico a redigir sua resposta.
6) Sabemos
que há um grande preconceito, dentre o alunado e mesmo
entre professores, em relação a alunos fora do padrão
dito "normal", e que não alcançam os demais nas etapas
de aprendizagem. Adjetivos negativos como "burro" e
"ignorante" são frequentes. Como dimensionar esse tipo
de pressão social sobre os alunos disléxicos e seu
desempenho escolar?
É necessário lembrar que a dislexia acomete indivíduos
com inteligência normal ou acima do normal. A
inteligência preservada dos disléxicos permite inclusive
que eles rapidamente identifiquem suas dificuldades para
aprender a ler. Não é raro, portanto, as crianças
disléxicas relatarem sentimentos de menos valia ou
descreverem histórias de sofrimentos e humilhações.
Nesse sentido, é necessário que a escola ajude o
disléxico a resgatar sua autoestima e o incentive a
acreditar em si. Os professores devem compreender que a
dificuldade do disléxico se restringe à leitura e que
essa dificuldade de forma alguma exclui o sucesso da
criança. O brilhante físico Albert Einstein, por
exemplo, era disléxico. A despeito da sua enorme
facilidade de processar números, Einstein apresentava
uma séria dificuldade para ler. Essa dificuldade,
contudo, não impediu que Einstein alcançasse notoriedade
e reconhecimento acadêmico.
O preconceito com os alunos disléxicos é movido, em
parte, pela ignorância. Quanto mais se conhece a
respeito da dislexia, melhor é a aceitação e a inserção
social do disléxico, bem como melhor o aluno é integrado
à escola.
7) A dislexia pode ser superada pelos alunos? Há
mecanismos e ferramentas didático-pedagógicas que
consigam auxiliá-los a superar suas limitações?
A dislexia é uma dificuldade persistente de leitura.
Essa dificuldade não pode ser curada ou superada. Isso
não significa dizer que o disléxico não conseguirá ler.
De fato, existe evidência de que os disléxicos, quando
submetidos a intervenções adequadas, aprendem a ler
palavras acuradamente. A leitura desses indivíduos,
contudo, é sempre marcada pela falta de fluência.
O método fônico é sem dúvida a melhor ferramenta
didático-pedagógica para ensinar o disléxico a ler. Como
proposto pelo modelo do déficit fonológico, as
representações fonológicas dos disléxicos são
deficientes e pouco especificadas, o que impede que eles
aprendam as relações letra-som. O método fônico, ao
preconizar o ensino sistemático e explícito das
correspondências letra-som, auxilia o disléxico a
compreender que a fala pode ser segmentada em fonemas e
que esses fonemas são representados por letras nas
palavras. Essa compreensão, denominada princípio
alfabético, é fundamental para a aprendizagem da
leitura.
Referências bibliográficas
Morais, J. (2013). Criar leitores: para professores e
educadores. Barueri/SP: Editora Manole.
Shaywitz, S. E. (1996). Dyslexia. Scientific American,
275, 98-104.
|