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21/05/2013 - Intolerância religiosa: como você prefere seus ovos?
Prof.ª Aline Martins dos Santos
Licenciatura em História - UFRRJ
Especialização em História Contemporânea - UFF
Mestrado em História Social - UFF
Na obra “As viagens de Gulliver” (1726), Jonathan Swift narra, na primeira parte do livro, as guerras entre os reinos de Liliput e Blefuscu. Os habitantes desses reinos, seres bem pequenininhos, odiavam-se tanto a ponto de matarem-se indiscriminadamente, e o motivo era: por qual lado quebrar um ovo cozido, pela parte mais fina ou mais grossa da casca?
Gulliver, curioso, perguntou ao rei de Liliput por que não faziam uma lei a respeito. O rei informou-lhe de que a lei existia e era muito clara e citou então o trecho do Dispositivo Constitucional número 1 que vigorava e, de acordo com ele, era desrespeitado há muitos séculos pelo reino rival: - "Os ovos devem ser quebrados pelo lado certo! Essa é a lei, o Dispositivo maior de nossa Constituição. Todas as manhãs os ovos devem ser quebrados pelo lado certo e não pelo errado. Há alguma dúvida sobre a necessidade e justiça de nossa guerra?"
Através dessa narrativa, Swift satirizava as guerras religiosas que, nos séculos XVI e XVII, opuseram católicos e calvinistas na Europa, provocando milhares de mortos, por divergências de dogmas e ritos. A ainda atual sátira de Swfit levanta algumas questões, entre elas: Existe uma fórmula no mundo de como “quebrar os ovos”, levando-se em conta que cada uma das partes considera certo o seu lado?
A religião é um elemento da cultura, um dos inúmeros componentes que a estruturam e dão a um povo símbolos que lhe conferem uma identidade, coesão e sentimento de pertencimento. Entretanto, as religiões, em geral, têm uma pretensão universalista, no sentido de que sua mensagem direciona-se à humanidade inteira e que, desta forma, todas as pessoas teriam o direito e o dever de converter-se à respectiva crença, que consideram a mais correta. Este tipo de pensamento acaba por colaborar para a intolerância a outras crenças e religiões.
Pregar sua religião ou divulgá-la, utilizando-se até mesmo de meios de comunicação para isso, não é, porém, intolerância. A intolerância só surge em situações muito específicas, quando a simples existência do outro é vista como uma ameaça a si, ou quando um adepto de uma religião, considerando possuir uma verdade absoluta, não consegue conviver com o fato de que o outro não pensa e nem crê nas mesmas coisas que ele e, a partir daí, cria ideologias e mecanismos, para dizer que é inaceitável que este outro enxergue o mundo de forma distinta.
Os direitos de criticar dogmas e encaminhamentos de uma religião são assegurados pelas liberdades de opinião e expressão. Todavia, isso deve ser feito de forma que não haja desrespeito e ódio ao grupo religioso ou crença às quais a crítica é direcionada. Quando o ato de criticar assume contornos de intolerância, e esta, por sua vez, torna-se uma perseguição onde não se respeita a liberdade religiosa e a dignidade humana dos demais, o que temos é um crime de ódio.
De extrema gravidade, a perseguição religiosa costuma ser caracterizada pela ofensa, discriminação e até mesmo ações que atentam à vida de um determinado grupo, como: o uso de palavras ofensivas ao se referir a um grupo religioso ou crença religiosa, e a seus elementos (deuses e hábitos da religião em questão e o desrespeito de símbolos religiosos, queima de bandeiras, imagens, roupas típicas, etc). Em situações extremas, a intolerância religiosa pode se tornar uma perseguição que visa o extermínio de um grupo com certas práticas de fé, levando a assassinatos, torturas e enorme repressão.
À intolerância religiosa somam-se a intolerância política, cultural, étnica e sexual, que estão presentes no cotidiano dos indivíduos: no âmbito do espaço doméstico, nos locais do trabalho, nos espaços públicos e privados, assumindo, muitas vezes, formas sutis de coação (violência física ou moral) e manifestações extremadas de ódio, envolvendo todas as esferas das relações humanas.
A recusa de aceitação do outro tal como é, está intimamente ligada ao preconceito. O reconhecimento do outro como seu semelhante sempre foi um problema, renegar o outro é de certa forma afirmar sua identidade a partir dessa negação. Por conta dessa negação da religião e da cultura do outro, a humanidade assistiu, no decorrer de sua história, a violações freqüentes à liberdade religiosa. Estas eram (e ainda são) especialmente mais graves nos regimes teocráticos, nos quais o domínio da fé denota o domínio do poder.
Nos primórdios da civilização, condutas que divergissem da religião oficial eram severamente punidas pelo Estado, que temia que o culto a outra fé, diferente da oficial, pudesse minar opoder central. Nas civilizações mesopotâmicas, por exemplo, qualquer conduta avessa à religião oficial, que cultuava o soberano, era taxada como “bruxaria”, recebendo as mais severas punições, fato que contribuía para manter o poder nas mãos da classe sacerdotal.
Durante o período de hegemonia do império babilônico sobre a Mesopotâmia (1800-1500 a.C.), o Código de Hamurábi tinha como objetivo homogeneizar o reino juridicamente egarantir uma cultura comum. Entre outras coisas, o código apontava a morte nas águas do rio como o destino quase certo daqueles que ousassem divergir da religião oficial e, para coibir ainda mais tais comportamentos, o delator recebia como incentivo o patrimônio do acusado.
Milênios se passaram, e o Cristianismo surge na Palestina, região que vivia sob o domínio romano desde 64 a.C. Graças à sua mensagem redentora, o Cristianismo obteve enorme sucesso entre os excluídos da sociedade romana e ganhou cada vez mais adeptos, que repudiavam a imoralidade que reinava nas altas esferas de poder do Império e, além disso, se opunham ao militarismo e à estrutura escravocrata, pilares do poderio de Roma. Ao constatar o significativo aumento do número e da influência dos cristãos, o imperador Constantino concede a liberdade de culto à religião, porém, esta só será consolidada com o Imperador Teodósio que, convertido ao cristianismo, tornou-o a religião oficial do Império.
Entretanto, com o passar do tempo, de vítima a Igreja Católica transformasse em algoz, realizando perseguições tão ou mais violentas quanto às que sofreu. Após desfrutar de posição hegemônica durante séculos, ela viu-se em perigo e, frente ao surgimento de grupos dissidentes e do encontro com o progresso do Islã, em virtude das Cruzadas, ela responde com a Inquisição, ou o tribunal doSancto Officio. A Igreja e os governos católicos passaram a considerar a heresia (práticas contrárias ao que era definido pela Igreja Católica), como uma traição, e assim, uma enorme perseguição aos hereges toma conta da Europa, sobretudo na Espanha, em Portugal, na França e nos Países-Baixos. Contando, para isso, com uma vasta gama de justificativas bíblicas para perseguir e massacrar seus inimigos. Tal situação persistiu por séculos, nos quais incalculáveis vidas foram sacrificadas em função da intolerância.
Desde então, as sociedades humanas passaram por relevantes transformações, mas estas não extinguiram o preconceito, nem a intolerância. As guerras “em nome de Deus” permanecem atuais. No mundo globalizado pós-11 de setembro, o preconceito e a intolerância se revestem em novas rendas que procuram se validar por um discurso, estimulado pelo Novo Império, cuja conseqüência imediata é a criminalização de qualquer crítica à sua hegemonia, a qualificação indiscriminada de “terrorista” e as restrições às liberdades individuais e à própria democracia, em nome da segurança, tornando todos suspeitos em potencial.
Ao observamos a realidade brasileira, percebemos que à desigualdade, que toma conta de nossa sociedade e que a cada dia mais se amplia, soma-se a discriminação racial e o preconceito de classe. Convivemos com as injustiças sociais e raciais. Em tais condições, o preconceito e a intolerância, professados aberta ou dissimuladamente, tendem também a perdurar. Estes se fazem presentes em todos os espaços: no trabalho, nas escolas, nas universidades, nos meios de comunicação em geral, etc.
A imensa diversidade de crenças no Brasil é proporcional à intolerância religiosa aqui existente. Por conta disso, foi criado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa (21 de janeiro) por meio da Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007, sancionada pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva.
O estabelecimento de um diálogo inter-religioso é um fenômeno relativamente novo, iniciado no século XIX, e que só hoje começa a dar seus primeiros frutos. As liberdades de expressão e de culto são asseguradas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 18, aprovada pela Assembléia-Geral da Organização das Nações Unidas em dezembro de 1948, que assim dispõe:
“Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.”
(http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm)
O Brasil é um país de Estado Laico, o que significa que não há uma religião oficial brasileira e que o Estado se mantém neutro e imparcial às diferentes religiões. Há uma separação entre Estado e Igreja, o que garante, ou deveria garantir, um governo livre da influência de dogmas religiosos. A Constituição Federal também assegura o tratamento igualitário a todos os seres humanos, quaisquer que sejam suas crenças. Dessa maneira, a liberdade religiosa, ou seja, a possibilidade de exercer, ou não, uma religião, está protegida e não deve, de forma alguma, ser desrespeitada.
Toda religião tem o direito de consciência. O livre-arbítrio e a independência do indivíduo formam a base da liberdade de crença, e quem a ela adere tem o conhecimento de como ela funciona. Por isso mesmo, o indivíduo é o único responsável pelas consequências de participar de suas práticas. Entretanto, quando a liberdade de crença confronta-se, em algumas situações, a outros direitos inerentes ao ser humano, como a vida e a dignidade, tal confronto leva a humanidade a questionar seu caráter absoluto. A religião e a crença de um ser humano não devem constituir barreiras a melhores e fraternais relações humanas.
Qual seria, então, o ponto de equilíbrio entre o direito à liberdade de crença e os demais direitos humanos?
A tolerância pode ser esse meio-termo entre a liberdade religiosa e o respeito aos demais direitos humanos, ao sugerir também um dever de consideração para com o próximo sem que isto signifique descaso. A Concepção de Tolerância, exposta no Artigo 1º da Declaração de Princípios sobre a Tolerância, aprovada pela Conferência Geral da Unesco em Paris, em 1995, afirma, entre outras coisas, que tolerar é compreender que existem diferenças e aceitá-las, tentando conviver de modo pacífico, interagindo e aprendendo nesse convívio. Porém, tolerar não significa ser conivente com comportamentos afrontosos aos direitos humanos. A tolerância deve ser o pilar de sustentação de tais direitos, cuja combinação se dá com base em um sentimento de alteridade, de respeito ao próximo.
(http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm).
Trabalhada desta maneira a tolerância assume um caráter ativo, ao reconhecer como essencial a proteção ao pluralismo e à dignidade da pessoa humana, sendo equivocado relacioná-la a descaso, passividade ou permissividade. Tolerância pressupõe uma relação de alteridade que resulta na compreensão dos demais indivíduos, diálogo e predisposição ao entendimento, resultando na harmonia da equação entre liberdade religiosa e a proteção dos direitos humanos.
O direito à liberdade religiosa, assegurado constitucionalmente, implica um dever de respeito e consideração de uns para com os outros, e desta forma, um elo de compreensão pode estabelecer-se através da tolerância. Uma comunicação entre as diferentes crenças e sistemas filosóficos, entre as pessoas que aderem a essas crenças e filosofias. Não se trata da falsa comunicação, totalitária e impositiva, mas de uma verdadeira comunicação, baseada no respeito e na abertura que, acima de tudo, proporcionem formas harmônicas de interação com o Outro.
A partir da análise e da compreensão do que é a fé do outro podemos assumir uma postura de respeito e tolerância e encontrar caminhos e soluções verdadeiras para não apenas estabelecer outros diálogos, mas realmente caminhar em busca da aceitação do outro. Através da educação e do exemplo podemos apontar os motivos pelos quais todos possuem e devem possuir os mesmos direitos e serem protegidos pelas mesmas leis. Só o conhecimento vence o preconceito.
E, assim, quem sabe um dia os “homens pequenininhos” sejam capazes de sentarem juntos para dividirem o desjejum, em plena confraternização, cada qual “quebrando (ou não) os ovos” pelo lado que bem entenderem.