30/04/2013
Rastafarianismo:
um ensinamento para a paz.
Prof. Carl Lima
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Que tal uma religião que, aparentemente, não se organiza
em torno de um clero e tampouco tem seus rituais
desenvolvidos em templos convencionais? E, mais ainda,
não se caracteriza pelas leis escritas, e por isso
valoriza a cultura oral e a memória coletiva dos
antepassados africanos. São com essas características
que apresentamos o Rastafarianismo ou Movimento
Rastafári, como alguns membros gostam de
autodenominar-se. Criado na Jamaica na primeira metade
do século XX, segundo estimativas da ONU, conta por
volta de 1 milhão de adeptos pelo mundo, principalmente
em países de língua saxã, com destaque para os Estados
Unidos e a Inglaterra. Por essas características, o Rastafarianismo, para além de uma matriz religiosa, é
visto como uma filosofia de vida que prega a volta à mãe
África – Terra prometida/Sião -, sempre respeitando a
natureza e os ensinamentos de Deus, ou Jah, uma
corruptela de Jeová, Deus negro que ajudará através das
palavras e ensinamentos, guiando seu povo para a
libertação dos irmãos negros que vivem numa Babilônia
cotidiana. Isso faz deste um movimento apocalíptico,
que acredita que o Novo Reino está prestes a chegar,
trazendo enfim a redenção da humanidade no geral e da
África em particular. Para dar conta dessa noção
escatológica, 9 princípios norteiam a vida de um Rastaman:
1- Fortes objeções em relação a alterações agudas da
figura do ser humano, corte e escovamento [do cabelo],
tatuagem da pele, cortes da carne;
2. São basicamente vegetarianos, dando uso escasso a
certas peles animais, ainda assim proibindo o uso de
carnes suínas de qualquer forma, peixes de concha,
peixes sem escamas, caracóis, etc;
3. Adoração e aceitação a mais nenhum Deus além de
Jah, proibindo todas as outras formas de adoração
pagã, apesar de respeitarem;
4. Amar e respeitar a humanidade;
5. Desaprovar e abolir completamente o ódio, ciúme,
inveja, engano, fraude e traição;
6. Não aprovar os prazeres da sociedade moderna e os
seus males correntes;
7. Ter a obrigação de criar uma nova ordem mundial de irmandade;
8. O dever de um Rastafári é expandir a mão da caridade
a qualquer irmão/irmã que esteja em dificuldade,
primeiramente aos que sejam Rastafarianos e só depois a
qualquer humano, animal, planta;
9. Aderir às antigas leis da Etiópia;
Desses ensinamentos, destacamos dois, que de alguma
forma, singularizam os seguidores da Jah:
O primeiro, dá
conta da questão estética: todos os seguidores adotam os Dreadlocks, canudos fortes.
A cabeça e especificamente
os cabelos ganham a conotação de sagrados, representam a
união e a ligação com Jah. Como muitos dos ensinamentos,
este se baseia na leitura ortodoxa e direta do Velho
Testamento: "Não cortareis o cabelo, arredondando os
cantos da vossa cabeça, nem danificareis as extremidades
da tua barba" (Levítico 19:27.)
Segundo,
se destacam pela prática do vegetarianismo, ou seja,
adotam um regime alimentar que não implica sacrifício
animal. Mais uma vez, a fonte de justificativa é a
Bíblia: “Tudo o que não tem barbatanas ou escamas, nas
águas, será para vós abominação" (Levítico 11:13),
"Melhor é a comida de ervas, onde há amor, do que o boi
cevado, e com ele o ódio." (Provérbios 24.30-34 ). Todo
alimento rastafári é denominado de I-tal (Comida vital e
total), devem ser cozidos o menos possível e se tornam
melhores quando são sem sal e condimentos, pois assim
possuem maior quantidade de vitaminas, proteínas e força
vital. Em relação às bebidas, são, preferentemente, herbais, como os chás. O licor, leite ou café são vistos
como pouco saudáveis.
Como se formou o Rastafarianismo
O Rastafarianismo se formou na Jamaica – colônia Inglesa
- durante a década de 1930 e ganhou o mundo,
conquistando milhares de adeptos, com o movimento de
migração de jovens para a metrópole e mais detidamente
para os Estados Unidos. A sua criação está a ligada a
duas figuras destacáveis de Kingston: Marcus Mosiah
Garvey e Leonard Howell. O primeiro foi um líder
sindical, ativista político e um dos maiores
Pan-Africanistas. Intelectual que tinha suas ações
voltadas para a libertação, através da conscientização
do povo negro, contribuindo de maneira indelével para o
processo de descolonização de África. Para organizar a
luta, fundou em 1914 a Associação Universal para o
Progresso Negro (AUPN), que tinha como lema: One
God! One Aim! One Destiny! (Um
Deus! Uma aspiração! Um destino!) e objetivava unir
todas as pessoas de ascendência africana em uma grande
massa estabelecida em um país e num governo
absolutamente próprios.
Mesmo com toda essa trajetória política, Garvey é
conhecido na cultura popular jamaicana com o profeta
anunciador da religião Rasta. Segundo a memória dos
Elders – guardiões rastafarianistas – num domingo de
1926, durante uma missa, ele
proferiu as seguintes palavras: "Olhem para leste, para
a África, quando um rei negro for coroado, a redenção
estará próxima." Através dessa “profecia”, Marcus Garvey
é tido enquanto a reencarnação de João Baptista, e
segundo a versão bíblica, este tivera dúvidas sobre a
identidade do Cristo.
No que concerne a Leonard Howell, fora um dos primeiros a
organizar um pequeno reino, nos arredores de Kingston,
denominada Pinnacle, seguindo os verdadeiros
ensinamentos rastafári, com destaque para a “teoria da
Repatriação” que preparava o povo negro para o regresso,
a pátria-mãe, na antiga Abissínia (atual Etiópia e parte
do Sudão). Nessa fase isolacionista, o slogan desses
rastas eram: “Deixe meu povo ir”. Mas o quadro mudou,
fortes perseguições, por parte da polícia a essa
comunidade, com destaque para o dia 01/03/1958, quando
da comemoração da 1ª Convenção Universal do
Rastafarianismo (Nyabinghi), fez com que dissolvessem
o grupo, sendo alguns membros presos, inclusive Howell.
No entanto, esse acontecimento, que poderia ser
visto como negativo, serviu para propagar a religião
para os guetos da capital jamaicana, favorecendo a sua
disseminação e criando o lema “Todo poder ao povo”
Os dois personagens citados -
Marcus Mosiah
Garvey e Leonard Howell - convergem para um ponto em comum: a
formação do Rastafarianismo a partir do aparecimento e
das ações de Tafari Makonnem, ou simplesmente em amárico
– língua semítica - Ras (Príncipe ou Cabeça) Tafari (da
paz ou indomavel), casado com Waizaro Menen, em 1911,
filha do Rei Menelik II, representante da linhagem real
etíope, que segundo os escritos do Kebra Nagast – livro
sagrado – são herdeiros do Rei Salomão e de Makeda, a
rainha de Sabá, transformando o trono da Etiópia numa
tradição Salomônica. Em 1918, após a deposição de Lyasu
V, neto de Menelik II, sob acusação de aproximação com o
Islamismo, Ras Tafari assume o cargo de regente ao
trono, no governo da Rainha Zewditu I, irmã de sua
esposa. Graças à debilitação da Rainha, devido ao
diabetes, em 1928 é investido como Negus (rei),
assinando inclusive um Tratado de Paz com a Itália.
Após a morte desta, assume definitivamente em 1930 o trono real, sendo
o 225º imperador da dinastia, tornando-se, pela tradição, Negus Negasti (Rei dos Reis), eleito de Deus, Senhor dos
Senhores, Leão Conquistador da Tribo de Judá, com o nome
oficial de Hailê Selassiê I, que na língua local
significava “O poder da Divina Trindade”. Sua ascensão
ao trono significou para os rastafáris o fechamento da
profecia de Garvey: seria ele a terceira reencarnação de
Deus, após Moisés e Elias, e seria o responsável por
guiar o povo de Jah para a redenção, libertando-os da
Babilônia. Passou a ser idolatrado, inclusive com
cânticos de devoção, pelas comunidades rasta que se
formavam na Jamaica, sendo difundido por Howell como o
restaurador do mundo negro e que devia-se obediência a
sua figura e presença. É valido acrescentar que mesmo
com essa devoção por parte do Rastafarianismo, Hailê
Selassiê nunca se tornou adepto dessa filosofia, mas
também não a negava, como pode ser demonstrado em sua
atitude ao visitar a Jamaica em Abril de 1966: ao mesmo
tempo, confirmou ser um reles mortal, negando seu
caráter deísta e convidando aqueles que lhe escutavam a
adentrar na Igreja Ortodoxa Etíope, na mesma medida que,
usando de sua figura “sagrada”, portadora de poder,
pedia que o povo rastafári mudasse de estratégia, não
migrando para o Monte Sião antes de libertar sua
própria localidade. Esse ensinamento/revelação contribuiu
para uma nova fase da religião, que se caracterizou pela
preocupação não apenas da auto-salvação, mas pela
salvação dos outros, ajudando a difusão para além das
fronteiras jamaicanas.
Esse processo de divulgação da cultura rastafári tem
como vetor, além do já falado processo de imigração de
jovens para países centrais, com destaque para aqueles
de língua inglesa, o atrelamento de suas convicções à
explosão da música Reggae, com grande destaque para a
figura de Bob Marley, adepto em grande parte de sua vida
ao Rastafarianismo, particularmente a Congregação
denominado as “Doze tribos de Israel”, criada pelo
Profeta Gad e que se destacava pelo culto fanático a
Selassiê, concebendo-o não como nova reencarnação de Jah,
como era comum supor na concepção clássica da religião –
numa aproximação Judaica/Rastafari – mas sim seria ele
o próprio Jesus Cristo, o Messias, em seu retorno à
terra, desenvolvendo uma cosmogonia Cristã/Rasta. Dois
álbuns se destacam nessa simbiose estética/religiosa, o
Natty Dread (1974) e o Rastaman Vibration (1976).
O Reggae se torna então, pelo mundo afora, o gênero
porta-voz dos ideais e anseios rasta, suas letras
traduzem os sentimentos de paz, harmonia e convicção da
possibilidade de um mundo melhor, na mesma medida que
crítica as injustiças e preconceitos que sofrem a
comunidade negra, ideais caros a uma
religião/filosofia/prática que se destaca por uma
plêiade de crenças
espirituais e convicções culturais abertas e uma não
menos variedade de interpretações.
Para compreender em essência o sentimento do
Rastafarianismo deixo como mensagem uns versos da banda
maranhense Tribo de Jah:
Não basta ser rasta,
É preciso ser puro em seu coração
Não basta ser rasta, não
Pra obter graça é preciso perdão
Não basta ser rasta
É preciso estar certo da convicção
Não basta ser rasta, não
É preciso ser justo em sua razão
(Texto do prof. Carl Lima, da redação d'O
Historiante)
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