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14/05/2013
Às armas cidadãos!
A Revolução Francesa entre a violência e um ideal igualitário, libertário e fraterno.
Prof. André Araújo
Licenciado em História - UCSAL
Mestre em História - UEFS
Revolução, segundo o dicionário, pode ser: rebelião armada, revolta, sublevação, científicos. Pode ser tudo isso junto ou alguns desses elementos. Certa vez um professor definiu revolução como um “freio de arrumação”. Um tipo de freada brusca, de um pau-de-arara com a intenção de se arrumar tudo que está solto dentro deste veículo. No caso que pretendemos analisar, o veículo era a França, e o que estava solto e desarrumado eram as classes que constituíam o país e a sua organização.
(Imagem da Revolução Francesa, por Eugene Delacroix, feita em 1830, depois da revolução. A imagem busca exaltar a nação e a liberdade como guia do processo revolucionário e seus adversários pisoteados)
Um dos episódios revolucionários mais lembrados na história é a Revolução Francesa. Um momento em que muitos consideram como de ruptura política, econômica e cultural. As transformações sociais que culminaram com a queda do Antigo Regime na Europa, onde o povo foi declarado soberano, em detrimento da soberania do monarca, teve grandeinfluência nas agitações ocorridas na França. As idéias circulantes no território francês influenciariam outros países europeus a destituir monarquias, bem como nos territórios do além-mar, a exemplo das ideias francesas circulantes na Bahia durante a Revolta dos Búzios, demonstradas nos boletins sediciosos, colocados numa manhã de domingo na porta de igrejas e em locais onde a população baiana circulava. Nesses boletins, inspirados no ideal francês, era declarado um tempo de mudanças para o povo “bahianense”. Onde “A liberdade consiste no estado felis, no estado livre do abatimento: A liberdade he adocura da vida, o descanço do homem com igual parallelo de huns para outroz, finalmente a liberdade he o repouzo, e bemaventurança do mundo” (mantida a grafia do período).
Durante a revolução francesa foram declarados os Direitos Universais do Homem, entre os quais reconhecia-se o direito de resistência à opressão, a liberdade, a propriedade, e estesdireitos individuais não poderiam de forma alguma se impor sobre a Nação. Basicamente, era um conjunto de leis que buscavam abolir a concentração de poderes em uma figura, o rei, e assegurariam a propriedade privada acumulada pela burguesia insurgente, que já não mais aceitaria se submeter aos desígnios e ingerência do rei.
Nesse momento libertário, se criou uma das máximas que sustentam o ideal democrático liberal: liberdade, igualdade e fraternidade. Neste conflito de interesses, entre burguesia e nobreza, como o povo simples que invadiu a Bastilha estava inserido? Como isso se manifestou dentro desse contexto, que se pretendia democrático, libertário e coletivo? A revolução, em nome desses ideais, precisou de violência? Quais as máximas democráticas, solidárias, libertárias, fraternas e igualitárias foram possíveis ser respeitadas?
Em se tratando de histórias (isso mesmo, no plural) sobre a revolução francesa, podemos destacar dois caminhos que os historiadores vêm discutindo e discursando a respeito desse momento de exceção. Uma história liberal e uma marxista. Uma exaltando a discussão política e outra exaltando a dimensão transformadora da ação popular. Uma constrói um protagonismo através de legisladores e outra através das condições materiais e capacidade insurgente do povo simples da França. Discussão nada conclusa, mas que nos ajuda a tentar entender pressupostos que sustentam nossos discursos, anseios e atuações. Afinal, olhar a história de forma contemplativa, sem buscar criticá-la é destituí-la de seu caráter político, é perder-se sobre as suas potencialidades, sua dimensão transformadora e, sobretudo, não perceber que o discurso histórico, em muitos momentos, é o que busca legitimar ações das camadas que dominam, ou que pretendem assumir o poder. A princípio, vamos nos ater a um discurso liberal e observaremos os interesses circunscritos nestes.
Uma história liberal
Quando em 1815 Napoleão foi derrotado e se queria restituir um governo monárquico na França, alguns sujeitos, jornalistas, políticos, professores universitários, enfim, pessoas que pensavam o momento político que viviam, como Jules Michelet e François Guizot, escreveram sobre a revolução francesa para “reavivar a memória” e transformá-la em arma política contra o Antigo Regime. A revolução transformou-se em um instrumento de luta política. Os historiadores dessa escola liberal estudaram as atas das assembléias, leis, decretos, leis do governo para reproduzir os fatos políticos da Revolução e demonstrar os avanços políticos do período e os riscos que a população corria caso uma monarquia fosse restabelecida.
Assembléia Nacional Constituinte: um dos eventos importantes para derrotar Luis XVI, clero e nobreza.
A escola liberal concentra-se na idéia de que os eventos ocorridos em 1789 começaram neste mesmo ano pela difusão dos ideais iluministas, discutidos pela sociedade científica e literária, lojas maçônicas, cafés, salas de arte, enfim, locais que a burguesia costumava freqüentar. Dentre os pensadores destacados, estavam Voltaire, Diderot, Rousseau e Montesquieu. Estes pensadores, que constituem-se como um dos principais iluministas, eram contra o despotismo absoluto e acreditavam que o uso da razão era o único caminho para uma sociedade perfeita. Uma sociedade onde as liberdades e talentos individuais, igualdade civil e política e a liberdade de pensamento pudessem ser vivenciados. Na versão liberal, a revolução teria sido realizada de fato pela assembléia constituinte em agosto de 1789, quando aprovaram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Os representantes dos cidadãos queriam exercer a administração do exército, das finanças, da administração das coisas públicas (a palavra república vem do latim res publica = coisa pública). Através da destituição da soberania do rei a revolução estaria consagrada.
A revolução teria sido um sucesso pela garantia da soberania do indivíduo. Soberania política dos indivíduos e garantida pelo Estado. O rei perdeu soberania, a aristocracia perdeu suas distinções sociais e políticas e o Estado passaria a ser a manifestação dos interesses gerais de todos os cidadãos. Essa ruptura, que representava uma clara diferença de interesses, entre a burguesia e a nobreza, não aconteceu sem conflitos.
O processo revolucionário teve sua faceta violenta, que não foi nada fraterna. Durante o período identificado como a fase do rigor revolucionário, qualificada pela burguesia como o Terror (1793-1794), foram ignorados, em sua maioria, os direitos liberais. O governo revolucionário criou leis de exceção para “salvar a revolução”. Prendeu e assassinou cerca de 30 a 40 mil franceses. A guilhotina cortava cabeças e o espetáculo de sangue e vingança contra aqueles que, segundo os revolucionários, oprimiram o povo tornava-se um momento necessário para salvar a insurreição que reivindicava a soberania popular. Suspeitos não eram julgados, e segundo Robespierre, o país precisava mais de guilhotinas que juízes. A revolução prescindiu do bom senso em favor do arbítrio daqueles que acreditavam que no extermínio do inimigo residia a solução para a salvação nacional.
Reprodução do “teatro da guilhotina”
Violência na revolução
A escola liberal buscou apagar a fase do Terror de suas histórias, minimizando a violência deste momento revolucionário. Retiraram a violência desse teatro revolucionário a fim de legitimar o seu legado. A violência, quando aparecia nessas versões liberais, tornava-se envolta de uma dramaticidade, como fruto da intransigência do rei em entender que um novo momento se configurava e seria implacável. A revolução, para estes, foi um acontecimento contínuo, desenvolvido numa etapa; toda sociedade estava alinhada com o intuito de destituir o rei (como um bloco unânime estavam o terceiro estado, baixo clero e uns poucos nobres liberais) e seus objetivos e ações foram justificáveis em nome de um bem maior. A igualdade, a liberdade e a fraternidade.
Numa sociedade em que a violência, o sangue, em se tratando de homens e animais, era mais cotidiano do que se possa imaginar hoje e diante da violência cotidiana, da mídia sensacionalista que temos hoje, que embriaga a população com sangue a todo momento na televisão, olhamos para o passado de forma, às vezes, romantizada. Imagina-se que lá é o lugar da paz e tranquilidade. Dessa forma, algumas pessoas hoje, até pela distância e pelos ideais que são largamente difundidos como sendo da revolução, olham para o teatro revolucionário de forma puramente romantizada. Destitui-se todo seu caráter violento.
A tomada da Bastilha vista por um contemporâneo, Claude Cholat, dono de uma taberna.
A Bastilha era um símbolo do arbítrio real, por ter servido como prisão. Essa fortaleza-prisão não era tão intransponível, pois das sete vezes que foi cercada em guerras civis, em seis foi dominada. E durante os eventos de 1789, bastaram apenas cinco horas para ser dominada. Sua simbologia representa mais uma vitória popular contra o absolutismo, do que como um ato fantástico de organização e superação popular contra o rei. Sabe-se, por exemplo, que quando ela foi tomada havia apenas sete presos. Imagens de lutas em torno da Bastilha foram forjadas para criar uma imagem de um povo francês que lutou contra o absolutismo. A imagem acima reúne vários eventos ocorridos durante a revolução, não necessariamente tudo que havia se passado durante a queda da Bastilha. Mas, também, não é necessariamente uma mentira deliberada com intuito de se forjar uma memória revolucionária.
Alguns eventos revolucionários: quando a Bastilha (prisão francesa), um dos símbolos da revolução, foi tomada, seus conquistadores deixaram para trás um rastro de 150 mortos, dentre eles, seu diretor. Este teve a cabeça cortada e colocada na ponta de uma lança, protagonizando um desfile macabro pelas ruas de Paris. Uma semana depois desse evento, um funcionário do governo chamado Foullon de Doué foi linchado pela população, acusado de ser um dos responsáveis pelo aumento dos preços do pão. Seu genro, em seguida, fora capturado e obrigado a desfilar com a cabeça de Foullon e a beijar o rosto do defunto ao som de “Beije papai, beije papai”. Esse genro, chamado Bertier, teve destino parecido ao do sogro. Foi morto, teve o coração arrancado e jogado aos lados do governo municipal. A população, em êxtase, segundo uma gravura que descrevia a cena grotesca, gritava: “É assim que os traidores são punidos”
Se não se pode deixar de admitir o legado positivo da máxima “liberdade, igualdade e fraternidade”, entendê-la como fruto de um momento histórico é fundamental para não incorrermos nos mesmos erros. A luta pela igualdade de oportunidades, ideais solidários e fraternos são sempre bem vindos. Permitir que poderes públicos ou que agentes que pretendem transformar a sociedade, no calor das situações, arbitrem pelo direito sobre a vida ou morte do outro pode ser muito prejudicial. O poder cega, mas, sobretudo, a vontade de permanecer poderoso pode fazer com que o homem não queira enxergar.
A Declaração dos Direitos do Homem e dos Cidadãos
Veja mais:
Livros:
- O Beijo de Lamourette – Robert Darnton
- Boemia literária e revolução: o submundo das letras no antigo regime – Robert Darnton
- Historia da Revolução Francesa: da queda da Bastilha à festa da federação – Jules Michelet
- Às armas, cidadãos! A França revolucionária (1789-1799) – Nilse Wink Ostermann e Iole Carreta Kunze
Filmes:
- A Queda da Bastilha (1935), dirigido por Iack Conway. Durante a Revolução Francesa dois homens apaixonam-se pela mesma mulher. Um deles sacrificase por ela, indo em seu lugar para a guilhotina.
- Marat-Sade (1967), dirigido por Peter Brook. Os internos do hospício de Clarendon', liderados pelo Marquês de Sade, encenam o assassinato de Marat.
- Casanova e a Revolução (1982), dirigido por Ettore Scola. Um grupo de aristocratas segue o Rei Luís XVI em sua fuga para Varennes, a fim de escapar da revolução.
- Danton, o Processo da Revolução (1982), dirigido por Andrzej Wajda. Os embates entre o líder popular Danton e Robespierre, durante o período do Terror.