Tempo Histórico: breves reflexões teóricas

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João Lucas Poiani Trescentti
Graduado e Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Unesp, respectivamente em: 2017 e 2022.
Endereço eletrônico: [email protected]

Como citar este artigo:
TRESCENTTI, João Lucas Poiani. Tempo histórico: breves reflexões teóricas (Artigo). IN: O Historiante. Publicado em 16 de Fevereiro de 2024. Disponível em: https://ohistoriante.com.br/2024/02/tempo-historico-breves-reflexoes-teoricas/. ISSN: 2317-9929.

Resumo: Relógios são invenções modernas que contribuíram para o sentimento de aceleração do tempo (Rosa, 2022), cuja vivência, sobretudo nos dias atuais, tende a se assemelhar a do coelho, personagem de Lewis Carroll, de Alice no país das maravilhas, sempre bradando: “Estou atrasado, estou atrasado!”. Justamente por isso, o objetivo do texto é refletir, ainda que brevemente e com intenção descritiva, sobre as diferentes formas de medição do tempo em alguns momentos históricos, o que demonstra a historicidade do conceito e a importância de seu estudo, propondo que o tema seja abordado em aulas de História educação básica de modo não tangencial.
Palavras-chave: tempo; modernidade; conhecimento histórico; aceleração.

Na contemporaneidade, não é possível medir com precisão somente as horas, os minutos, os segundos, mas também os milésimos de segundo, graças aos objetos que demarcam o tempo em suas menores frações, a exemplo dos relógios. Como toda invenção, seu impacto extrapola as fronteiras circunscritas à técnica, ou seja, também atinge a sociedade, contribuindo para mudanças em sua forma de organização. Justamente por isso, é importante historicizar o conceito tempo, porque “Durante milênios, [por exemplo], houve grupos humanos que puderam viver sem relógios e sem calendário” (Elias, 1998, p. 23) e, para se localizar, observavam-se os ciclos de elementos naturais, a saber: sol, lua, estrelas, plantações, e suas respectivas colheitas.

O estudo do tempo está intimamente relacionado à compreensão do passado e da história, uma vez que esta última se trata de “[…] uma forma de pensar pessoas, suas relações e suas ações, e de dotá-las de vida” (Pimenta, 2021, p. 11). Ainda que este texto aborde o assunto a partir de voo rasante, pretende-se demonstrar as principais formas de empregar sentido ao tempo ao longo da história, o que contribui, por exemplo, para a defesa do tema em salas de aula da educação básica, não apenas de maneira tangencial ou a partir de plano temático específico, mas como fio condutor a ser abordado em todos os outros assuntos da disciplina, com a intenção, justamente, de despertar nos estudantes o estímulo à compreensão da historicidade de determinado pensamento cultural, político ou econômico desenvolvido em uma época específica.

A tabela abaixo apresenta alguns modos de organizar o tempo ao longo das épocas.

Tabela 1 – Algumas formas de organizar o tempo ao longo de três períodos históricos

TEMPOPERÍODO HISTÓRICOCARACTERÍSTICAS
MíticoAntiguidadeCíclico (repetições)
Judaico CristãoIdade MédiaLinear (passado vinculado à criação, presente em busca de Deus e futuro à espera do juízo final)
IluministaSéculo XVIIILinear (vale-se da razão como meta a ser atingida)
Fonte: Confecção própria a partir de: BARROS, 2013.

Ainda que os dados do quadro acima possam ser profundamente conhecidos do público especialista, a análise deles é necessária, porque permitiu identificar que “Durante milênios, houve grupos humanos que puderam viver sem relógios e sem calendário” (Elias, 1998, p. 23). A respeito disso, lembra-se que para se localizar, os elementos naturais, a exemplo do sol, da lua, das estrelas, das plantações e de suas respectivas colheitas, eram observados com especial atenção. Dada a ausência de calendários e organização do ritmo cotidiano através das horas, não havia a preocupação com um cronograma rígido de tarefas que fossem pensadas a longo prazo, mas com as atividades que pudessem ser desenvolvidas entre o nascer e o pôr do sol, o que se repetia a cada fim de um ciclo, hoje conhecido como o ocaso de um dia.

Localizar-se temporalmente tratava-se de atitude que também exigia a criação de narrativas que pudessem transmitir a posteriori os vários acontecimentos dos grupos. Contadas e disseminadas entre as gerações por meio da oralidade – uma vez que não havia linha cronológica única e a forma de se lembrar dos atos do passado dizia respeito a fatos ocorridos e repetidos no interior da própria comunidade -, as sociedades antigas desenvolveram, por sua vez, dois modos de se organizar no tempo: a invenção de mitos e a observação da natureza, ambos cíclicos.

Foi somente durante a Idade Média que se inaugurou a concepção temporal judaico-cristã, qual seja, a linearidade. Gradativamente, o tempo cíclico foi suplantado pela cronologia única, que demonstrava viver-se o presente constantemente na companhia divina – por isso, eram necessárias orações -, e que o futuro seria o momento da prestação de contas a Deus, instante do juízo final. Tratou-se de tempo religioso, controlado pela Igreja Católica ao longo de mais de mil anos. No ordenamento temporal religioso, contudo, ainda no começo do período medieval, não se distinguia presente de passado, sentidos como únicos, porque ainda se vivia à sombra dos imperadores e de outras figuras ilustres de Roma (Ariès, 1989).

A despeito de durante a Idade Moderna ter sido mantida a forma linear de perceber o tempo, constatou-se momento de marcante ruptura com a onipotência divina. Passou-se ao “Tempo mensurável, mecanizado […] o tempo do mercador, mas igualmente descontínuo, cortado por paragens, momentos mortos, afectado por acelerações ou atrasos […] Nesta maleabilidade do tempo […] situam-se os lucros e as perdas, as margens de ganho ou de perda” (Le Goff, 1979, p. 54). O tempo do trabalho não mais tinha por mira o campo, e sim a produtividade das negociações comerciais, cuja característica era a velocidade. Aos poucos, os períodos de descanso ou de elevação do pensamento a Deus foram substituídos pelo trabalho dos mercadores, inaugurando-se, assim, uma nova maneira de constatar o pecado: tratava-se da ociosidade (Le Goff, 1979, p. 61-73).

Dessa forma, “a partir do Renascimento e da Reforma esta tensão dilacerante foi penetrando em camadas sociais cada vez mais numerosas” (Koselleck, 2006, p. 315). O historiador alemão Reinhardt Koselleck precisou que desde a Idade Moderna, o camponês havia rompido com a estrutura perspectiva de longa duração, ou seja, tendeu a secundarizar suas atividades campestres e orações – o que não significa que tenha desconsiderado Deus ou mesmo expressões de religião e religiosidade -, repetidas por milênios, o que favoreceu a inauguração de um novo modelo de vida, que, no século XVIII, pautou-se pelo progresso, direcionado ao mundano. Noutras palavras, ao cosmopolitismo teleológico, do qual o filósofo Immanuel Kant (1724-1804), por exemplo, foi um dos principais teóricos responsáveis (Hartog, 2013, p. 150). O tempo ainda se estruturava linearmente, no entanto, direcionava-se à Razão.

Logo, até a Idade Moderna, conforme Koselleck, experiência e expectativa seguiam unidas, pois a única experiência de um camponês era a de cuidar da terra do senhor. Já a expectativa era idêntica, ou seja, não havia separação prática entre os dois conceitos. Porém, com o advento da modernidade, experiência e expectativa distanciaram-se, isto é, as experiências do passado não faziam mais sentido à aplicabilidade da vida moderna, porque houve a validação do novo, da novidade, pontos ampliados significativamente com a Revolução Francesa (1789). Ao reestruturar a noção de tempo, esse evento demarcou o mundo ocidental, haja vista que delimitou ruptura com o passado arcaico, quer dizer, com a monarquia, que não mais deveria ser tomada como meta política. A disseminação das ideias revolucionárias dizia respeito à reescritura da História, dado, inclusive, que redimensionou o comportamento em torno da própria memória, individual e coletiva, que passou a ganhar novos contornos.

Desde o século XVIII, a tensão permanente entre experiência e expectativa proporciona o tempo histórico, porque ambas acontecem no presente. Segundo Koselleck, durante a modernidade também houve grandes avanços científicos contributivos à tensão, a exemplo do fabrico de medicamentos e estudo de novas doenças, especialmente no campo psicológico; os meios de transporte – trens, navios a vapor e automóveis -, cuja alta velocidade deixava o rastro da perplexidade e o medo do impacto negativo sobre o corpo; os meios de comunicação, também símbolos do progresso técnico – a exemplo do telégrafo, telefone e outras tantas novidades, caso das impressoras rotativas – que dinamizaram a impressão de periódicos -, das máquinas de escrever, dos gramofones e aparelhos de rádios…

Justamente por isso, é fundamental indicar que “o homem moderno declara o rompimento com os períodos antecessores” (Koselleck, 2006, p. 53) além, é claro, de viver aceleradamente desde então, proporcionando a rapidez com que se aguarda o futuro, ou seja, vive-se como se houvesse a possibilidade de antecipá-lo ou já modificá-lo. A intensa rapidez favoreceu cada vez mais a construção de forma de vida também acelerada, com a qual se buscava o novo (Rosa, 2022). A receita de pensar o tempo utilizada pelo rei Luís XIV – o presente dizia respeito à sabedoria, o passado à memória e o futuro à previsão – não fez mais sentido no mundo moderno.

Desse modo, constata-se o intenso dinamismo da História (Kalifa, 2016, p. 9-17), que carece de ser estudada para a compreensão das produções humanas ao longo do tempo – fossem invenções materiais, artísticas, religiosas, culturais, filosóficas… -, conforme argutamente afirmou o historiador francês Marc Bloch (2001). A sintonia entre esses dois estudiosos está no entendimento do estudo da história a partir de problemáticas, compreensão e, eventualmente, formulação de conceitos e terminologias, etapas que miram as ações do ser-humano, em constante movimento com suas experiências e expectativas.

Embora se trate de conclusão já consagrada na historiografia, nunca é demais lembrar que a história “[…] é uma poderosa ferramenta de conhecimento de qualquer realidade humana, tanto do passado como do presente” (Pimenta, 2021, p. 11). Ainda que a frase possa ser lugar-comum, ela convida a refletir para tema que carece de mais estudos, ou seja, o impacto dessa abordagem aplicada em salas de aula da educação básica.

De outro modo, em tempos em que a História, sobretudo no Ensino Médio, parece dispensável nos currículos escolares, ensiná-la a partir da compreensão da historicidade de um determinado momento do passado, e não apenas como mera apresentação de fatos e datas, é uma saída importante que, além de resistir às investidas anti-intelectuais de determinados governantes, visa contribuir para a formação criteriosa e reflexiva dos estudantes, haja vista que “entender pensamentos sobre a história é uma excelente maneira de entender pensamentos sobre o tempo, a vida e o mundo. Podemos conhecer coisas fundamentais acerca das sociedades observando como elas pensaram sua própria história, e isso vale também para nossa sociedade atual” (Pimenta, 2021, p. 249).

REFERÊNCIAS

ARIÈS, Philippe. O tempo da História. Tradução Roberto Leal Ferreira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.

BARROS, José D’Assunção. O tempo dos historiadores. Petrópolis: Vozes, 2013.

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

HARTOG, François. Memória, História, Presente. In: HARTOG, François. Regimes de historicidade, presentismo e experiências do tempo. Tradução Andréa Souza de Menezes, Bruna Beffart, Camila Rocha de Moraes, Maria Cristina de Alencar Silva, Maria Helena Martins. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013. p. 133-191.

KALIFA, Dominique. Introduction. Dénommer le siècle: ‘chrononymes’ du XIXe siècle. Revue d’histoire du XIXe siècle, n. 52, p. 9-17, 2016. Disponível em: https://journals.openedition.org/rh19/4985. Acesso em: 30 ago. 2022.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado – contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2006.

LE GOFF, Jacques. O tempo de trabalho na “crise” do século XIV: do tempo medieval ao tempo moderno. In: LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Editora Estampa, 1979. p. 61-73.

PIMENTA, João Paulo. O livro do tempo: uma história social. São Paulo: Edições 70, 2021.

ROSA, Hartmut. Alienação e aceleração: por uma teoria crítica da temporalidade tardo-moderna. Tradução Fábio Roberto Lucas. Petrópolis-RJ: Vozes, 2022.