24/08/2013
"Cidade Maravilhosa, cheia de
encantos mil..." Ops, peraí, cara pálida! Encantos mil
para quem?
Prof.ª
Aline Martins dos Santos
(Clique aqui e confira mais
textos desta autora)
Apesar
de não ser mais a capital do País desde 1960, ano em que
o centro político brasileiro foi transferido para Brasília, a cidade do Rio
nunca deixou de ser vista como a porta de entrada do
Brasil, a síntese de suas culturas e a própria
representação da cultura “em si” do Estado do Rio e do
País como um todo. Isso parece ficar muito claro em
filmes como “Aquarela do Brasil” (1942) do Estúdio
Disney, onde o Pato Donald, em visita ao Brasil, é
apresentado às maravilhas do Rio, como o samba, a
cachaças, as mulheres, etc, tendo o papagaio Zé Carioca,
o representante do típico malandro carioca, como guia. O
filme foi criado numa tentativa dos Estados Unidos para
reunir aliados durante a Segunda Guerra Mundial, esforço
esse que ficou conhecido como “politíca da boa
vizinhança.”
Mais recentemente,
filmes como “Rio” (2011) de João Carlos Saldanha, não
parecem ter mudado muito essa forma de retratar a
cidade. Não
há como negar que o filme é divertido e a animação é
linda. Porém, um olhar mais atento nos revela a forma
como “Rio” apresenta ao mundo o Brasil-Rio e o povo
brasileiro-carioca: A qualquer momento uma mulata
rebolando pode aparecer pelo caminho, macaquinhos roubam
coisas, a fala dos personagens mistura o português e o
espanhol, quando não utilizam expressões típicas da
língua espanhola. E não podia faltar a corrupção,
favelas, contrabando de animais silvestres, entre
outros. Tudo isso seria uma critica de Saldanha a
infra-estrutura brasileira, ou a utilização mais uma vez
da imagem já customizada do Brasil que sempre rendeu
sucesso de bilheterias no mundo todo?
Um episódio muito
polêmico envolveu a série-animação Simpsons, “Blame it
on Lisa”, traduzido no Brasil como “O Feitiço de Lisa”.
O episódio foi proibido
de ser exibido no Brasil pela Embratur que protestou e
ameaçou os produtores da série por entender que ele faz
uma dura critíca a esse Rio idílico. O episódio mostra
uma imagem nada desejável do Rio de Janeiro com macacos,
ratos e cobras nas ruas e com uma população sexualmente
agressiva. No episódio Lisa tenta ajudar um órfão
chamado Ronaldo que havia sumido. Ela faz uma ligação ao
orfanato e a ligação tem um valor astronômico. Eles
resolvem então ir ao Brasil para procurá-lo. No hotel os
funcionários jogavam futebol, Homer é sequestrado por um
taxista, Bart é atacado por pivetes e os programas
infantis tem apresentadoras provocantes. Os brasileiros
falam com sotaque espanhol, a Amazônia é vizinha do Rio
e as pessoas andam em filas de conga pelas ruas. Devemos
ressaltar que o episódio é sim, uma pesada crítica ao
Brasil, mas é também
uma crítica ao próprio padrão de vida americano e à visão
que os americanos têm de outros países.
Outro vídeo recente, digamos, bem interessante, sobre o Rio de
Janeiro e que ajuda a construir essa visão para os
outros países, foi o curta realizado por Eduardo
Meirelles e utilizado na cerimônia de eleição do Rio de
Janeiro para sediar as Olimpíadas de 2016. O vídeo nos apresenta
um rio idílico: Jovens sarados se exercitando ao ar
livre nas belas praias da Zona Sul. Pescadores e
nadadores usufruem de uma Baía de Guanabara despoluída.
Ciclistas pedalam na orla tranquilamente sem correrem o
risco de serem atropelados. Remadores cruzam a Lagoa
Rodrigo de Freitas sem quaisquer vestígios de peixes
mortos, belos homens e mulheres jogam vôlei na praia.
Todo mundo sorri. É difícil ser infeliz num lugar assim.
Um homem batuca na caixa de fósforos e cantarola os
primeiros versos de Cidade Maravilhosa e todos vão se
contagiando e aderindo à cantoria. O Cristo Redentor
abre os braços para uma paisagem sem morros, sem
favelas, milícias ou quadrilhas de traficantes.
Alpinistas, surfistas, skatistas e até mesmo os deficientes físicos
estão completamente integrados à cidade, com facilidade
de acesso para realizar suas atividades. Os estádios
foram reformados para a Copa de 2014, estão lindos e são
realmente de matar qualquer argentino de inveja.
Torcedores educados comemoram na capital mundial da paz
e, como não se vê um único pobre, pedinte ou mendigo,
também capital da prosperidade.
Quem não adoraria
morar nessa “maravilha de cenário”, nessa Terra
paradisíaca? Pena que só Cabral, Paes e Meirelles saibam
onde fica esse Rio. Os cariocas continuam vivendo na
cidade que “traz os punhos fechados na vida real”. Um
Rio que funciona apenas para a Copa, para as Olimpíadas,
para o Papa.
Nada contra quem gosta
realmente de sentir e viver a cidade desta maneira.
Apesar de não gostar nem um pouco de calor, não posso
dizer que não gosto de dias de sol. É impossível
negar que um dia de sol no Rio, com um bonito ceu azul
aquece qualquer coração. Mas o que me
incomoda mesmo é essa ideia propagada aos 7 ventos, e
comprada por muitos, de que nós moradores do Rio
vivemos num eterno verão e que toda a população vive e
trabalha em frente ao mar e anda de biquíni e sunga o
dia inteiro. Que tudo é uma maravilha, todos vivem
cantando e sambando o dia inteiro, felizes da vida, nada
de mal nos atinge e nada nos perturba. Nem
todo carioca ama a praia, ri de si mesmo, faz amigos em
cada barzinho, sabe da vida dos vizinhos ou gosta de
futebol. Ou seja, não existe apenas um jeito de ser
daqui, nem todo mundo que nasce no Rio é um perfeito Zé
Carioca. Existe
vida para além do Carnaval e do futebol.
Quando
nos propomos a falar de Rio de Janeiro é necessário
compreendermos antes de tudo, de que Rio estamos
falando? O
Rio das novelas de Manoel Carlos, o Rio para onde o
Cristo Redentor abre os braços? Ao
avaliar este jeito de pensar, sentir e fragmentar a
cidade e, pior ainda, o Estado, é impossível não
recordar de uma frase de Nelson Rodrigues: “quando passo
de Méier, começo a sentir saudades do Brasil”. A carga
de significados como
esta nos leva a crer que, a compreensão do que é
“civilizado” para muita gente no Rio, passa apenas por
alguns raros bairros do subúrbio e da zonal sul,
chegando até o centro da Cidade, até a década de 1950
chamada como a Cidade. Posteriormente, outros bairros
foram crescendo e assumindo algumas funções que antes
somente a Cidade poderia prover.
Mas o Rio é
muito mais do que só a cidade. Meu Rio “é uma cidade de
cidades misturadas”. O Rio tem aproximadamente 16
milhões de habitantes e tem várias regiões. Desde
a famosa Zona Sul tão cantada, musa dos poetas e
inspiração para as novelas de Manoel Carlos; o Centro,
onde tudo começou, com seus prédios modernos
contrastando com as construções antigas. A Norte, que
possui uma grande densidade populacional e de empresas,
com suas casinhas de subúrbio de grandes quintais, hoje
nem tão grandes assim. Com suas feirinhas de tudo o que
se possa imaginar. Mercadão
de Madureira, Feirinha da Pavuna... Tem também o
território das favelas, que se espalham por todas as
zonas do Rio, mas que mesmo desordenadas, tem uma
população honesta e trabalhadora, que infelizmente é
refém do crime. Como se quase toda cidade não o fosse.
A Zona Oeste populosa,
com economia e industria crescente, e onde se localiza a
“estrangeira” Barra da Tijuca com suas grandes avenidas
e mansões, e a minha amada Universidade Rural. As
cidades interioranas, muitas com um quê de Minas Gerais.
A região dos Lagos, também com belas praias. A Região
Serrana com seu friozinho gostoso. A
Baixada Fluminense, que por muitos anos era de onde saía
toda a riqueza do Rio, com seus casarões dos barões do
café, muitos completamente abandonados. Hoje considerada
uma grande cidade dormitório, que concentra a maior
população negra do Rio. Fazemos todos, sem nenhuma
distinção de localização e origem, parte desse grande
Estado.
Quando penso também na
grande transformação que o Rio vem passando para os
grandes eventos, outra frase que vem a memória é a de
Millôr Fernandes “A
natureza não é sábia se não, não faria uma cidade
maravilhosa bem no meio da especulação imobiliária”. O boom imobiliário
transformou o Rio em um verdadeiro canteiro de obras.
Um
verdadeiro processo de “gentrificação” vem acontecendo
em alguns lugares antes esquecidos, como no Morro da
Conceição e em algumas favelas que, para melhorar,
precisam expulsar “naturalmente” seus moradores mais
pobres, cedendo lugar para turistas e especuladores que
compram os imóveis para revender ou transformar em
“points” do roteiro obrigatório da cidade maravilhosa.
Esse
processo tem varrido a população mais pobre,
literalmente, para baixo do tapete. Um exemplo é o
bairro de Madureira que
após um longo período de relativo abandono, teve muitas
casas derrubadas para alargamento de vias e construção
do terceiro maior parque da Cidade com um ideal
totalmente sustentável e fazendo com que a população de
baixa renda tenha dificuldade de se manter na região, ou
prefira vender suas casas e comprar em outros lugares
mais baratos, mais parece que tudo se justifica por uma
espetacularização das cidades.
Pólos
siderúrgicos, pólos petroquímicos e muitos outros
investimentos estão em marcha pela cidade e pelo Estado,
liderados pela dupla dinâmica Cabral e Paes. Na
tentativa de melhorar a infra-estrutura e mobilidade
urbanas, estão sendo realizados investimentos como a
ampliação do metrô até a Barra da Tijuca e o BRT (Bus
Rapid Transit) ou Transporte Rápido por Ônibus, com
quatro vias expressas – Transcarioca, Transbrasil,
Transoeste e Transolímpico. A revitalização
da área do Porto e a expansão da Barra, passando pelo
Recreio até Santa Cruz, pretendem recuperar e ampliar as
fronteiras da cidade. Porém, todas essas obras vem
expulsando diversos moradores e sofrendo críticas pela
má qualidade de algumas e gastos excessivos... Isso
para não falar da construção dos estádios.
Mas
estas interferências serão suficientes para garantir a
mobilidade e o desenvolvimento de que os municípios e o
Estado precisam? E não somente mobilidade física, mas de
capacidade de acesso a emprego e renda. O
advento de grandes eventos internacionais como a Copa e
as Olimpíadas, serão suficientes na hora de pagar a
conta da supervalorização do custo de vida? Será o
legado dos jogos e da pacificação uma herança de
dívidas, vida cara e exclusão dos mais pobres - cada vez
mais empurrados para a esquecida periferia - ou de mais
igualdade e oportunidades?
É necessário entender que o Rio não é só um roteiro
turístico, que começa em Copacabana e termina na
Rocinha. Cidade sem fronteiras não significa, apenas,
publicizar que as pessoas já podem subir o morro
tranquilamente para ver e apreciar a vista e a
feijoada de Dona Fulana. O teleférico no Complexo do
Alemão virou um ponto turístico, mas a Favela continua
sendo Favela.
Apesar de tudo... “Soy
loca por ti” meu Rio de Janeiro. Meu Rio... Bravo,
guerreiro, que mesmo estreitado às margens da política e
da violência, segue simpático pedindo passagem. Meu Rio
“cercado de luta e suor, esperança num mundo melhor e
cerveja pra comemorar”, porque ninguém é de ferro é
claro. Meu
Rio que já está cansado de tantos desmandos e maltratos,
que acorda as 4:30 da manhã, encara condução lotada e
calorenta para chegar ao trabalho às 7:30, trabalhar
como louco para depois se espremer de novo na condução,
e ainda chegar e ter que cuidar da casa e
filhos, torcendo para que eles tenham ido para a escola
e não tenham se envolvido com marginais, e ainda assim
declararem seu amor por esse Sol e Mar.
Sonho com o dia em que o
meu, o nosso RIO - em letras garrafais para simbolizar
toda a cidade, completa, inclusa, integrada como
realmente deve ser – torne-se, verdadeiramente,
um lugar para todos, cheio de encantos mil e bonito por
natureza.
(Texto do
Prof.ª Aline Martins dos Santos, da redação d'O Historiante)
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